domingo, 27 de dezembro de 2009

Melodia incipiente…

Do alto do morro, o homem contemplava a paisagem que se estendia por quilômetros silenciosos. De quando em quando suspirava. Era uma hora calma, os pássaros guinchavam, longínquos, no céu as nuvens faziam-se e desfaziam-se, preguiçosamente. Ele refletia – mas não seria capaz de definir o conteúdo de seus pensamentos. O que importava eram os sentimentos inexplicáveis que o assolavam naquele espaço plácido. Eram um misto de tranquilidade e desespero – uma amálgama de sentimentos tão difusos que as palavras não comportariam qualquer descrição.
 
Subitamente ele fechou os olhos, procurou cegamente os caminhos de sua felicidade naquele instante de placidez que o atravessava como uma faca, os olhos fechados, o rosto retesado, as mãos repousadas sobre o parapeito do mirante. Ficou algum tempo nessa atitude, distante da indigesta humanidade que o angustiava e preso naquela condição primária de ser vivo relutando em morrer. Quando abriu os olhos, as pupilas brilhavam tristemente. Os lábios descerraram-se, e o homem começou a cantar, incipiente como uma criança que acabasse de descobrir a existência de melodias no ar do mundo – enquanto uma aragem fresca agitava a copa das árvores e o tempo estacionava seu cansaço sobre a terra em perene inquietude
 
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terça-feira, 27 de outubro de 2009

O HOMEM E O DESESPERO


Em um dia de sol opaco – e era um dia de inverno, as rosas murchas nos recantos de muro, as crianças inexpressivas em seus silêncios enregelados, as rugas marcando mais profundas a existência das mulheres – um homem foi chamado frente ao Desespero. Atirou longe o monumental agasalho que trazia, descobriu o rosto oculto por um capuz, afastou de si as malas hipotéticas que trazia a tiracolo, e macilento, como um defunto que se apresentasse ao ritual de seu sepultamento, ele se apresentou frente o Terror dos Homens. Nos seus olhos frios o Desespero esperava, e murmurava palavras incompreensíveis. Depois de um tempo de mútua contemplação – externo a eles, o hálito dos zéfiros e a o hirto caminho de uma realidade em agonia – o Desespero sorriu, e exprimiu-se em palavras tais: ‘Tu, grande homem, símbolo duro de um tempo duro, insígnia da ternura numa dimensão de pegajosa ternura, tu, que ousou definir-te justamente quando já não eras capaz de suportar qualquer definição, tu, enfim, vens te colocar frente a mim! És a recompensa caçada entre as trevas, o prêmio a que me reservei num instante de cobiça... Agora vês o quão inúteis eram teus objetivos, quão ridículos os teus sonhos!... Dei-te o amor mais puro, o néctar da paixão ardente, e quando mais julgavas seres capaz de fazê-lo frutificar, de vencer o tempo e as agruras que tornam em ruínas o belo ao cabo de segundos, fiz com que ele apodrecesse pouco a pouco na tua boca, para que te não sobrasse nem ao menos a lembrança saborosa do deleite de antanho... Dei-te a presunção de abarcares com o teu saber todas as portas do sucesso e da filosofia, guiei-te por meio dos meandros mais sinuosos até que te percebeste submerso no lodo que tu próprio tinhas despertando com teus passos seguros... Dei-te amigos, e a volúpia de tê-los ao pé de si, disponíveis, assíduos, os olhos doces pousados no teu semblante austero, em ti, referência luminosa que abarcava todas as influências e desvanecia as certezas... E muito pausadamente, como quem degusta uma fruta, como quem deposita numa cova a flor da morte, eu os afastei - firmemente, para que não voltassem, não votassem nunca... e a tudo isso assistias com esse mesmo rosto inescrutável. Destruí tudo o que amavas – nem a convicção paralisante de que viveste legitimamente eu te permiti guardar no coração embotado. E nada te resta agora, senão a minha companhia eterna...” O homem estremeceu, fitou no Desespero um olhar de alma ferida, entreabriu os lábios, mexeu-os com vagar. O Desespero considerou de si para si que o homem orava ao Deus há muito abandonado no pedestal divino de cujo pé o homem se recusara a ajoelhar-se, e riu-se de escárnio. Mas o homem não orava. Recordava os beijos de paixão que trocara com a mulher que o enlouquecera, a dura caminhada através dos silêncios inamovíveis em busca de um conhecimento que lhe inculcara o mais langoroso desolamento, os amigos que sumiram mudos no alvoroço dos dias que não se repetiriam mais... Depois desse exercício de dor, ele levantou o corpo musculoso, a face reluzente de suor, os músculos contraídos, e disse: “Não importa o que me fizeres, não importa a que ermo estrangulado me leves na tua faina de impiedade... o gênio inquebrantável, esse não conseguiste furtar-me na tua armadilha... teus ardis não dobraram minha têmpera... viva eu sozinho, doente, espezinhado pelos fantasmas que fores me atirando como tomates podres, nem ao menos assim verás corar minha face de vergonha, nem remexer-se a minha boca num esgar! que eu me violente intimamente para não deixar transparecer na exterioridade das minhas pupilas o flagelo que ronda meus segredos! que eu redija a história larga dos opróbrios com o sangue irriga meus membros, de modo que a outro não se imponha, como a mim, o martírio de não ter salvação... que eu seja o teu filho, mas principalmente o teu maldizente! Se meu fado é carregar-te vida afora, que eu o faça de modo a jamais perceber-te senão quando estiver aparelhado de forças hercúleas com que repelir-te e amaldiçoar-te! Ainda que me tenhas roubado os horizontes”, arrematou o homem, erguendo a fronte lacerada e fitando o sol que desmaiava de cansaço, “não me furtaste as veredas”. O Desespero mordeu os lábios, enquanto fitava o homem que afastava num passo marcial, amparando com o pensamento as pernas que queriam titubear de fraqueza.


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Na Calçada, poeira…

Contemplava-a com os olhos marcados pela vigília. A imagem que se formava em minha retina era uma nesga de vida que se apresentava sob a forma de olheiras profundas, um sorriso inexpressivo, um tom de cansaço que se comunicava aos membros frágeis. Fiquei olhando o seu semblante durante um tempo bem longo, ela ao longe, andando na calçada com um jeito indolente, um pouco afastada do grupo de prostitutas mais jovens cujo corpo ainda não se degradara com a agrura da profissão. Riam ainda com certa entonação argentina, mas que já se fazia ouvir marcada por uma impostação e uma predisposição para o cálculo e a simulação. De quando em quando uma se adiantava do grupo, ao ver o sinal de um freguês que se achegava num carro de vidros negros que se abriam apenas o suficiente para que o seu ocupante pudesse trocar algumas palavras com a garota e combinar o programa. Mas eu não prestava muita atenção a essas carnes ainda frescas. Interessava-me aquela mulher de porte mendicante, com rios de velhice precoce a sulcar o rosto, coxas finas e seios achatados que mal faziam pressão às roupas excessivamente justas.

Recostei-me no assento e fechei os olhos por um instante, depois de fitar a paisagem urbana a que sempre me vi preso por um sentimento estranho de inquietação. Os postes públicos estavam acesos, o asfalto resplandecia com a luz crua que incidia sobre ele. Os umbrais dos edifícios eram ocupados por um ou outro mendigo. Dois deles tinham nas mãos visguentas um saco plástico que levavam periodicamente ao nariz, num contínuo esvaziar-se e encher-se. As lojas, fechadas, pareciam agressivas em sua mudez, como se estivessem preparando as energias e os ardis comerciais para o dia que nasceria horas depois, repleto de sede e pressa. Alheia a tudo, a prostituta continuava a andar, correndo o olhar provavelmente mortiço sobre as calçadas pouco movimentadas, procurando um cliente. Meu celular vibrou, mas não me movi. Aquele instante era pouco para abarcar a extensão de realidade que se impunha à minha consciência.

Perguntas redemoinhavam, pensamentos fundiam-se e dissociavam-se, e a noite não elucidava minhas dúvidas. Eu não me sentia mais que perplexo. Mas era uma perplexidade estranha, tranqüila, cheia de um sentimento de pasmo silencioso manchado de aceitação. A mulher ia-se afastando com vagar, a bolsa pendendo no braço frouxo. No seu rosto residia uma expectativa, no silêncio da calçada seus passos deviam ecoar ocos. As nádegas escassas mal rebolavam, nas costas manchas roxas viam-se, nítidas. E ela, sem saber, pertencia-me naquele instante, em toda a sua essência manifesta e imanente, presa eternamente aos minutos em que meu olhar percorria os seus contornos e minha reflexão abandonava os limites do perceptível, elucubrando a sua vida escura de calçada, pó e noite.

Liguei o motor, fiz o carro deslizar pela estrada até emparelhar no passeio público onde a mulher agora aguardava. Ela olhou, surpresa, o vidro negro do automóvel abrir-se cautelosamente e do interior do veículo saltar uma nota amarfanhada que caiu-lhe aos pés sem ruído. Acelerei subitamente e só olhei pelo retrovisor ao dobrar a esquina. Ao longe, atrás, a mulher fitava um ponto da calçada, parecendo hesitar.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Sonho rompido

Ele sentia uma lascívia sinuosa explorar seu corpo a cada carícia ardente. Era com íntima satisfação que via o enlevo de ambos transformar-se em excitação doida, as línguas polivalentes e irrequietas, as mãos passeando no ar à busca de um pedaço de pele a palmilhar, os olhos profundos e amortecidos pelo desejo a contemplarem por um momento o olhar também lânguido do outro, para só então, num segundo expectante, desaparecerem sob as pálpebras que se cerravam ligeiras, num antegozo febril. Misteriosamente, as roupas evaporaram-se, os corpos se tornaram indistintos na confusão de gemidos que enchiam o ar do quarto, e os dois encaminharam-se, os olhos ainda cerrados, para o leito, unidos pela mesma ânsia de se afogarem naquele deleite. O peito expandia-se, a respiração tornava-se um ronco cavernoso que saía ofegante na sua boca expectante...

Perplexamente, a tela apagou-se e o edifício ficou às escuras. Na escuridão que o rodeou subitamente, o silêncio acolheu num ressonar de tristeza a solidão que se fazia impenetrável nas suas mãos apertadas.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

OLHARES ENTRELAÇADOS...

A palavra escapou-lhe repentinamente dos lábios já entreabertos, e o olhar, dantes firme, tornou-se estático, estupefato. O semblante ficou lívido. Fitou assombrado toda a multidão que esperava suas palavras, paralisado. O silêncio não durara ainda um segundo, e já todo o seu corpo tremia, a vergonha ruborizara seu rosto, a respiração tornara-se impossível nos pulmões agoniados. Sabia exatamente o que deveria dizer, a entonação adequada, o timbre de voz necessário para angariar a simpatia dos ouvintes, os gestos que, calculada e tranquilamente, tinha que esboçar no ar eletrizado pela expectativa. Mas, justamente no instante de maior segurança, naquele inviolável segundo em que o homem crê possuir nas mãos o poder de esmagar o insucesso, faltou-lhe a clareza de uma sílaba, e a palavra que já saía pressurosa engasgou-se, silenciou, escondeu-se nalgum recanto obscuro, impedindo a passagem da torrente de palavras que ansiava por inundar as consciências. Decorreu ainda mais um segundo. O orador, imóvel em seu fracasso, contemplava a multidão com olhos mortiços. Uma tristeza infinita cobria-lhe as íris e invadia as pupilas angustiadas e sombrias, diminuídas pelo horror. A multidão fitava-o em meio a um burburinho insidioso. Provavelmente a imagem do homem que se interrompera no seu discurso pretensioso traduzia a estereotipada visão do ridículo, a espalhafatosa imagem do perdedor que causa riso e piedade à turba. Durante um par de segundos que não passava, orador e multidão desafiaram-se secretamente – entrelaçando olhares que teciam na atmosfera ácida uma animosidade antiga e inamovível. Um ódio irônico fundia-os numa mesma miséria superior a eles próprios. Os olhares entrelaçados talvez permanecessem imutáveis por muitos minutos se o orador, num repelão intempestivo, não rosnasse um “muito obrigado” e se retirasse do palco, permitindo à multidão emergir da letárgica contemplação, estremecendo numa risota que ia muito bem com o tom alcalino do céu

sábado, 20 de junho de 2009

SOLIDÃO PUTREFATA...

texto suprimido temporariamente...
participando de concurso...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

UM TALHO: O MUNDO

Um campo de terra, demarcada, que rasga o mundo
Não é o mundo.
É apenas a misteriosa ordenação
Que o faz parecer
Rasgar o mundo
Sem pertencer a ele.

E o mundo fica órfão dele
Porque já não é possível resgatá-lo
Do sombrio ofício, humanamente,
De rasgar o mundo.

E o mundo abre um parêntesis.
Parêntesis que não o arranca
Da tristeza, recôndita tristeza
De estar incompleto
Irremediavelmente ferido:
Talho de terra rasgando-se
Cicatrizando-se aos poucos
Orfandade terrosa
De mundo
Dilaceradamente mundo.