domingo, 22 de abril de 2012

Espelho Quebrado...


            Primeiro considerou o longo caminho que se desenrolava na forma de aléias de pedras brancas que se perdiam ao longe, desembocando numa cadeia de montanhas cujos picos brancos resplandeciam com a luz do dia nascente, para depois considerar a monstruosidade de seus pés descalços e ensangüentados que mal agüentavam com o peso do corpo. Era com um sentimento de íntimo orgulho que observava na sua pele as feridas que porejavam um sangue fétido, e os olhos não conseguiam conter a imensa alegria ao ver a seus pés, num trapo hediondo de sangue e horror, um cadáver de fisionomia idêntica à sua, com a garganta aberta e os olhos opacos. Na destra ainda segurava uma faca escarlate cujo cabo já se tornara visguento e insuportável ao tato. Ele ajoelhou-se e examinou o corpo morto, como se investigasse a existência de algum resquício distante de vida a tremeluzir no olhar imóvel. Ficou algum tempo acariciando a pele lívida do outro, rindo-se sadicamente do esgar desesperado que se desenhava naquele semblante cheio de um ódio inaudito, até erguer-se lentamente, ainda fitando o cadáver. Quando a contemplação silenciosa já não cabia na sua satisfação, ele permitiu-se gargalhar de uma forma malévola que arrepiou os seus próprios sentidos. A gargalhada estendeu-se por todo o seu sangue como um fluido de gelo que fechou sua boca abruptamente, mas o riso ainda ecoava nos seus ouvidos quando se ergueu da cama num arranco violento, suando, a lua alvacenta iluminando fragilmente o seu quarto. “Sonho estranho”, disse consigo, o peito opresso. Temeu durante alguns segundos que tivesse deixado escapar algum grito ou mesmo uma gargalhada que revelasse aos pais, que dormiam próximos do seu quarto, que estivera sonhando, mas o medo dissipou-se rapidamente, porque o único som que escutou foi o bater oco do seu coração.
            Sentou-se na cama e ficou olhando um pedaço mais escuro do assoalho, sem cansaço ou consciência. Desperto, contou os pisos que se distribuíam harmonicamente, em losangos caprichosos e lisos que o surpreenderam por não apresentarem qualquer mácula aparente. Uma limpidez brilhante cobria aqueles pisos geometricamente recortados, e ele perguntou de si para si se valia a pena ter uma forma definida e imutável, ser um liso losango ligado a outros iguais a si, submetido ao pisar perpétuo de pés que sempre haveriam de machucar-lhe a superfície, apenas pela certeza de resguardar-se da imprevisibilidade de não possuir destino certo? Pois os losangos do piso tinham a sua missão e essência devidamente representada pela própria função, que era a de ornar o piso e torná-lo agradável às vistas e aos pés – nada ultrapassava ou modificava sensivelmente essa função, e eles, se consciência tivessem, poderiam amparar-se perpetuamente no consolo de terem seu lugar no mundo, um lugar seu por direito, impossível de ser usurpado. Ele ficou alguns minutos refletindo sobre essa idéia, sem pressa, os olhos agora acostumados à penumbra. Começou a caminhar pelo quarto, sentindo uma vontade terrível de fumar, como já fizera algumas vezes, escondido.
            “Não consegue dormir?”, indagou uma voz que vinha do umbral da porta. Ele voltou-se, observou a figura silenciosamente, mas não respondeu. Apontou um caderno negro em cima da escrivaninha. Sobre a capa, repousava uma caneta prateada a reverberar a luz do luar.
            “Estava escrevendo, então?”, a figura adiantou-se, e a quando a luminosidade natural bateu-lhe no rosto, foi possível distinguir o sorriso que ornava o semblante de feições macias. Os olhos aquilinos de pupilas alargadas denotavam um gênio tenaz que parecia suavizar-se pela bonomia inata que resplandecia em seus gestos.
            “Não é conveniente que fique aqui muito tempo, Rosana”, respondeu-lhe, os braços cruzados. Tentou demonstrar certa irritação, mas não conseguiu. Os músculos faciais não enrijeceram da maneira que ele desejava, e a fisionomia continuou simplesmente pensativa.
            “Somos primos, meu lindo, não há nada de mais no fato de eu conversar um pouco com você no seu quarto”.
            “Concordo, mas deve concordar que um papo entre um casal de primos, no meio da madrugada, perto de uma cama, num quarto iluminado pela lua... não é o quadro mais casto que se possa conceber”.
            Rosana libertou uma risada argentina, que o moço temeu por poder perfeitamente despertar os seus pais. Ela avançou para a escrivaninha, arrebatou o caderno e o folheou, de pé. Ela vestia uma camisola que delineava seu corpo adolescente, ao qual faltava ainda aquele apuro místico que somente o tempo pode legar a uma mulher. Ele observou-a numa quietude absoluta, recordando-se que há alguns meses ele tivera aquele corpo nos braços e sorvera nele um prazer físico que o embriagou por horas.
            “Acho melhor você deixar o caderno onde estava, virar as costas e voltar para o quarto. Juro que conversamos amanhã pela manhã, logo que me levantar. É melhor”.
            Ela apenas volveu o olhar para a janela, balançou a cabeça e bocejou.
            “Não seja bobo, Carlos”.
            O moço apertou os lábios, e sentou na cama. Voltou a olhar para os losangos. “Descobri outra vantagem de ser um losango de piso: não nutrir desejo sexual por ninguém, menos ainda pelas primas”.
            Rosana aparentava ler com atenção algum trecho do caderno. Declamou em voz alta:

Faces voltadas para a lua
Noite áspera fruindo a própria escuridão
Sorrisos cálidos erguendo-se ao céu envaidecido.

E como um rosário amoroso de luz, traduzindo uma oração,
O reflexo da lua beija a água do rio adormecido.

Eu não sei trovar sem cantar o infinito.
            Ela ficou parada, os olhos ainda fitos no papel.
            “Não entendi o verso final”.
            Uma lufada de vento inquietou as cortinas. Carlos suspirou, espreguiçou-se, olhou com tédio para o caderno aberto nas mãos da garota, que o olhava agora com atenção.
            “Nem eu mesmo sei. Ultimamente tenho escrito muita coisa sem sentido”. Ele calou-se um pouco, sentindo uma emoção aquecendo seu sangue e criando um bolo ligeiro na garganta. “Quando você não tem idéia definida de coisa alguma, quando o seu mundo é composto apenas por etéreas teorias que tudo explicam mas que não levam a qualquer conclusão prática, a literatura serve como um derivativo ao alcance do tédio. O homem escreve sobre as páginas que se apresentam à sua frente com a alma cansada, mas ainda aspirando a ideais que estão muito acima deles, uma ânsia de se descobrir completo e unido ao mundo que tenta compreender...” A sua voz tremeu um pouco, como se ele não soubesse mais como completar o pensamento. Fixou os olhos em Rosana, ergueu a destra, tentou esboçar um gesto que saiu tão impreciso quanto a forma das próprias reflexões. “Eu não sei explicar”.

Foi com ternura que Rosana achegou-se ao garoto, tomou-lhe as mãos e pousou-as sobre as suas.
“Por que precisa explicar? O importante não é sentir, como você me disse tantas e tantas vezes neste mesmo quarto?”
Ele aborreceu-se com a lembrança, levantou-se, olhou através da janela aquele cenário tão conhecido das suas noites de insônia. Tão bom seria o mundo sem as palavras, tão boa a vida sem os pensamentos insinuando-se no sangue, irrigando os músculos, torrentes de dúvida e medo se estendendo aos gestos e perpetuando a história da aflição e da dor... Alisou os cabelos que lhe irritavam os olhos, tentando decifrar naquele silêncio repleto de grilos um segredo pelo qual efetivamente valesse a pena morrer. Ah! Quantas noites devassara assim, o corpo derreado na janela, estrelas coruscando num céu que se esvaía nas próprias e infinitas profundezas, tudo indefinido, etéreo, fascinantemente inquietante... Ah! O desejo sempre vivo de integrar-se àquele universo todo que lhe envolvia, afastar de si o ódio enorme e profundo da vida em insano movimento, penetrar em si mesmo e deixar de ser um indivíduo e tornar-se apenas uma coisa pensante, e só, só, só!
Rosana levantou-se, cingiu-se ao corpo do garoto. Puxou o rosto dele contra o dela, contemplando-o de muito perto, transmitindo-lhe o seu hálito de menta em meio a um respirar levemente alterado. Ele endireitou o corpo, cingiu-lhe a cintura, esmagou-lhe os seios com a pressão de seu peito, e beijou-a com uma fúria lasciva que estava a quilômetros de distância do desejo. Ficaram enlaçados, ela com a cabeça apoiada nas espáduas dele, pensando em mil coisas, o coração irrequieto, sentindo-se prestes a desfazer-se em arrepios por sentir, apertado contra si, todo o calor daquele garoto que a intrigava e atraía – ele com a mãos acarinhando distraidamente as costas da moça, as pálpebras derreadas, tristemente preso ao contato doce da prima.
Subitamente desprendeu-se daquele enleio, afastou-a rapidamente e precipitou-se na cama, repentinamente desesperado. A garota assustou-se muito com a mudança de atitude, recuou dois passos até encontrar o parapeito da janela, de onde, os olhos atônitos, contemplou a face decomposta do primo.
“O que houve?”, interpelou suavemente, uma nota de carinho vibrando na voz cautelosa.
“Nada”, respondeu Carlos, a face sombria. “Quero que você vá embora já... que me deixe em paz... só isso”.
“O que eu fiz?”, retrucou a garota, melindrada. O comportamento estranho de Carlos a aborrecia muito.
“Nada... só quero que vá embora”.
Carlos deitou-se com o corpo virado para a parede, sem prestar atenção à prima, que se retirou depois de contemplá-lo ainda por um minuto. Uma aragem suave entrou no quarto, remexeu as cortinas, inquietou as resmas de papel dispostas em cima da escrivaninha, despertou o caderno que, aberto, ergueu algumas páginas numa sonolenta indagação. “Por que não consigo livrar-me desse permanente desespero? O que me leva a tratar rudemente pessoas que não possuem nenhuma culpa?” Apertou nas mãos a coberta, as unhas fazendo pressão contra a fazenda felpuda. “Oh! Não fosse essa convicção de estar representando uma farsa!”
Sentou-se na cama, agarrou o celular que deixara sob o travesseiro, e discou um número. Ouviu o chamar ritmado e insensível repetir uma, duas, três, seis vezes, até uma voz rouca e indolente murmurar “Alô?”.
“Gustavo?”, pronunciou Carlos lentamente. Do outro lado da linha, o moço respondeu apenas, com a mesma voz sonolenta: “O que você quer? Acho que não deve ter desaprendido a ver as horas e a proceder com o mínimo de conveniência nas suas relações, não é? Por isso, irei pedir a você que...”
“Deixe para lá as conveniências e o horário, preciso dizer-lhe uma coisa. Eu tive um sonho muito estranho. A impressão que ele produziu em mim é difícil de ser explicada, e o significado dele escapa-me. Preciso contá-lo a alguém, por isso elegi você para a tarefa de escutar-me. Ouça. Eu matava, com um talho na garganta, uma pessoa de fisionomia idêntica à minha, e depois gargalhava, cheio de crueldade, como se fosse um sádico. O problema não é o fato de eu ter sonhado a morte de uma pessoa assassinada por mim, nem ter rido como um maluco depois de tê-lo feito, mas o fato de a pessoa aniquilada ter um semblante igual ao meu... E como estava desesperado o semblante daquela pessoa! A boca contorcida, os olhos raivosos e perplexos, como se ainda não tivesse entendido que estava morta, morta...”
Gustavo pareceu escutar com atenção. O mau-humor por ter sido acordado durante a madrugada desaparecera, o que sobrara era tão somente pasmo. Ele era um grande amigo de Carlos. Juntos desenvolviam conversas eivadas de questionamentos e de uma filosofia incipiente, mais teórica e etérea que prática e sistematizada. Escutou ainda algum tempo o relato do sonho do outro, a face séria escondida no escuro, a orelha latejando devido à pressão do celular.
“Não ocorreu a você, Carlos”, manifestou-se ele, “ que esse tipo de sonho não é mais que uma espécie de antevisão do nosso futuro? Digo nosso, porque comungamos de várias concepções, teorias e filosofias que nos lançam em dúvidas sempre vívidas e poderosas. Nós relativizamos tudo em nossas vidas, Carlos, e o fizemos cheios de uma convicção orgulhosa...”
“Calma”, interrompeu Carlos, a voz aparentando confusão, “ está me dizendo que esse sonho não é mais que a demonstração de um estado psicológico doentio em nós dois? Está me dizendo que nosso futuro é o suicídio?
“Não é isso”, redargüiu Gustavo. “O que digo é que nós, ao abdicarmos de nossos dogmas religiosos, ao adotarmos uma postura de indagação permanente e abrangente, ao colocarmos um ponto de interrogação na moral, nos costumes, no nosso lugar no mundo, no objetivo de nossas vidas, nós fomos excessivamente cruéis conosco. Destruímos nossos baluartes, e nos permitimos viver sob o signo da pergunta. Rejeitamos como inverídicas as verdades que a religião nos deu no seu pacotinho de preceitos cheios de mofo, buscamos nos livros e nos pensamentos uma verdade pela qual pudéssemos viver, mas nessa busca nós perdemos a base sólida que nos sustentava. Caímos, e o impacto quebrou algo dentro de nós. Para o resto da vida, carregaremos uma fisionomia atormentada, cujo reflexo será sempre idêntico ao de um espelho quebrado: os vários pedaços dispostos a reverberar nossa imagem, ainda que lindamente unidos uns aos outros, não deixarão de apresentar uma imagem fragmentada, confusa, avessa à harmonia. Eu cheguei a essa conclusão há muito tempo, e cada vez me convenço mais de que ela será a única certeza que me guiará doravante. Nós procuramos, Carlos, uma verdade que fosse diferente daquela que nos foi entregue desde a infância, uma verdade que fosse produzida por nós mesmo em nossa peregrinação pelo pensamento e pelo sonho, mas a conclusão a que cheguei apenas me assegura que terei sobre mim, até a morte, a inexorabilidade do sofrimento. E esse sofrimento tem algo de diverso do sofrimento das pessoas que não indagam sobre as bases do seu próprio ser, pois ele é mais profundo e poderoso naqueles que buscam um sentido fora dos muros dentro dos quais nos vimos nascidos. Ninguém que se atreva a pensar pode escapar à insígnia do desespero”.
Carlos não objetou nada até Gustavo terminar a fala. O tom tranqüilo do outro o deixou pensativo: ele falava de sofrimento e desespero constantes, mas a voz não traía nenhuma emoção adequada à seriedade do assunto. Notou-lhe essa contradição.
“Você não me entendeu bem. Meu ser, como o seu, terá sempre sobre si o peso dessa crueldade inconsciente, dessa angústia, dessa desolação. Mas eu amo a vida, e embora não veja nela senão uma sucessão de desgraças, há uma graça e um encanto em seus prazeres, que reluto em deixá-la. Já leu Hamlet, não? O príncipe dinamarquês alega que as pessoas não se matam e suportam as agruras por medo do desconhecido. Certo, muito bem, mas isso não resolve o problema. Vivemos com medo e pelo medo. A resposta está nessa afirmação? Se estiver, somos todos uma espécie depressiva e covarde, submetida apenas a uma Vontade universal, como queria Schopenhauer, que se nutre de desejos continuamente perseguidos, saciados, mortos e ressuscitados. A resposta está também na Vontade? E por que não estará também na liberdade impossível de se renunciar, como também a queria Sartre? Para onde olhemos, para onde nos coloquemos a vislumbrar um sentido, esbarramos em conceitos endeusados, em absolutos filosóficos que nos prendem tanto ou mais que a religião ou a moral, e por fim num necessário motivo final. Nossas ações precisam estar marcadas pela sombra teleológica. Se não está, é irracionalidade que não se coaduna com a natureza humana. Se está, é ação condicionada a se repetir até descortinar uma finalidade maior que nós próprios, uma ação que ultrapassa nossa compreensão e apenas nos permite indagar novamente sobre a sua razão suficiente. É um círculo vicioso, que os idiotas que criam sistemas de idéias reputam como passível de ser vencido através da delimitação de um espaço conceitual que sintetize e explique o homem. Mas nós, os artífices da indagação, os obreiros das perguntas que rasgam entranhas e dilaceram a vida, os pedreiros que destroem as casas sob as quais repousam e depois escondem-se sobre os escombros, palpitantes e impotentes, nós vivemos com essa condição irrenunciável de espelhos quebrados lutando para esquecer a própria imagem partida, fitando o mundo com os olhos fechados, porque ele também não é mais que um espelho de dimensões imensuráveis partido em pedaços grandes o suficiente para ocultar sua face fragmentada”.
O vento ainda batia nas cortinas, as páginas do caderno de Carlos erguiam-se de quando em quando, revelando algumas linhas impossíveis de se distinguir na penumbra.
“Se eu disser que já havia pensado nisso...”
“Você já teve todos esses pensamentos”, interrompeu Gustavo. “Não só os teve, como ainda os acalenta dentro de si, e certamente só faltou externá-los. Eu já os havia desenvolvido, e aguardava apenas para dizê-los. Mas não se preocupe tanto. A sua prima está aí, não está?”
Carlos desligou, abrupto. Ergueu-se, foi até o banheiro, lavou o rosto. Examinou, pormenorizadamente, o rosto que se refletia na superfície lisa e perfeita do espelho. Depois enveredou pelo corredor escuro, cujos quadros, pendentes das paredes, esboçavam formas diáfanas. Estacionou uns instantes em frente ao quarto de hóspedes, refletindo. Foi com um leve rangido, que soou como um gemido das dobradiças ásperas, que a porta abriu-se cautelosamente, para depois ser fechada cuidadosamente, como para proteger um segredo.