Primeiro considerou o longo caminho que se desenrolava na
forma de aléias de pedras brancas que se perdiam ao longe, desembocando numa
cadeia de montanhas cujos picos brancos resplandeciam com a luz do dia
nascente, para depois considerar a monstruosidade de seus pés descalços e
ensangüentados que mal agüentavam com o peso do corpo. Era com um sentimento de
íntimo orgulho que observava na sua pele as feridas que porejavam um sangue
fétido, e os olhos não conseguiam conter a imensa alegria ao ver a seus pés, num
trapo hediondo de sangue e horror, um cadáver de fisionomia idêntica à sua, com
a garganta aberta e os olhos opacos. Na destra ainda segurava uma faca
escarlate cujo cabo já se tornara visguento e insuportável ao tato. Ele
ajoelhou-se e examinou o corpo morto, como se investigasse a existência de
algum resquício distante de vida a tremeluzir no olhar imóvel. Ficou algum
tempo acariciando a pele lívida do outro, rindo-se sadicamente do esgar
desesperado que se desenhava naquele semblante cheio de um ódio inaudito, até
erguer-se lentamente, ainda fitando o cadáver. Quando a contemplação silenciosa
já não cabia na sua satisfação, ele permitiu-se gargalhar de uma forma malévola
que arrepiou os seus próprios sentidos. A gargalhada estendeu-se por todo o seu
sangue como um fluido de gelo que fechou sua boca abruptamente, mas o riso
ainda ecoava nos seus ouvidos quando se ergueu da cama num arranco violento,
suando, a lua alvacenta iluminando fragilmente o seu quarto. “Sonho estranho”,
disse consigo, o peito opresso. Temeu durante alguns segundos que tivesse
deixado escapar algum grito ou mesmo uma gargalhada que revelasse aos pais, que
dormiam próximos do seu quarto, que estivera sonhando, mas o medo dissipou-se
rapidamente, porque o único som que escutou foi o bater oco do seu coração.
Sentou-se na cama e ficou olhando um pedaço mais escuro
do assoalho, sem cansaço ou consciência. Desperto, contou os pisos que se
distribuíam harmonicamente, em losangos caprichosos e lisos que o surpreenderam
por não apresentarem qualquer mácula aparente. Uma limpidez brilhante cobria
aqueles pisos geometricamente recortados, e ele perguntou de si para si se
valia a pena ter uma forma definida e imutável, ser um liso losango ligado a
outros iguais a si, submetido ao pisar perpétuo de pés que sempre haveriam de
machucar-lhe a superfície, apenas pela certeza de resguardar-se da
imprevisibilidade de não possuir destino certo? Pois os losangos do piso tinham
a sua missão e essência devidamente representada pela própria função, que era a
de ornar o piso e torná-lo agradável às vistas e aos pés – nada ultrapassava ou
modificava sensivelmente essa função, e eles, se consciência tivessem, poderiam
amparar-se perpetuamente no consolo de terem seu lugar no mundo, um lugar seu
por direito, impossível de ser usurpado. Ele ficou alguns minutos refletindo
sobre essa idéia, sem pressa, os olhos agora acostumados à penumbra. Começou a
caminhar pelo quarto, sentindo uma vontade terrível de fumar, como já fizera
algumas vezes, escondido.
“Não consegue dormir?”, indagou uma voz que vinha do
umbral da porta. Ele voltou-se, observou a figura silenciosamente, mas não
respondeu. Apontou um caderno negro em cima da escrivaninha. Sobre a capa,
repousava uma caneta prateada a reverberar a luz do luar.
“Estava escrevendo, então?”, a figura adiantou-se, e a
quando a luminosidade natural bateu-lhe no rosto, foi possível distinguir o sorriso
que ornava o semblante de feições macias. Os olhos aquilinos de pupilas
alargadas denotavam um gênio tenaz que parecia suavizar-se pela bonomia inata
que resplandecia em seus gestos.
“Não é conveniente que fique aqui muito tempo, Rosana”,
respondeu-lhe, os braços cruzados. Tentou demonstrar certa irritação, mas não
conseguiu. Os músculos faciais não enrijeceram da maneira que ele desejava, e a
fisionomia continuou simplesmente pensativa.
“Somos primos, meu lindo, não há nada de mais no fato de
eu conversar um pouco com você no seu quarto”.
“Concordo, mas deve concordar que um papo entre um casal
de primos, no meio da madrugada, perto de uma cama, num quarto iluminado pela
lua... não é o quadro mais casto que se possa conceber”.
Rosana libertou uma risada argentina, que o moço temeu
por poder perfeitamente despertar os seus pais. Ela avançou para a escrivaninha,
arrebatou o caderno e o folheou, de pé. Ela vestia uma camisola que delineava
seu corpo adolescente, ao qual faltava ainda aquele apuro místico que somente o
tempo pode legar a uma mulher. Ele observou-a numa quietude absoluta,
recordando-se que há alguns meses ele tivera aquele corpo nos braços e sorvera
nele um prazer físico que o embriagou por horas.
“Acho melhor você deixar o caderno onde estava, virar as
costas e voltar para o quarto. Juro que conversamos amanhã pela manhã, logo que
me levantar. É melhor”.
Ela apenas volveu o olhar para a janela, balançou a
cabeça e bocejou.
“Não seja bobo, Carlos”.
O moço apertou os lábios, e sentou na cama. Voltou a
olhar para os losangos. “Descobri outra vantagem de ser um losango de piso: não
nutrir desejo sexual por ninguém, menos ainda pelas primas”.
Rosana aparentava ler com atenção algum trecho do
caderno. Declamou em voz alta:
Faces
voltadas para a lua
Noite
áspera fruindo a própria escuridão
Sorrisos
cálidos erguendo-se ao céu envaidecido.
E
como um rosário amoroso de luz, traduzindo uma oração,
O
reflexo da lua beija a água do rio adormecido.
Eu
não sei trovar sem cantar o infinito.
Ela ficou parada, os olhos ainda fitos no papel.
“Não entendi o verso final”.
Uma lufada de vento inquietou as cortinas. Carlos
suspirou, espreguiçou-se, olhou com tédio para o caderno aberto nas mãos da
garota, que o olhava agora com atenção.
“Nem eu mesmo sei. Ultimamente tenho escrito muita coisa
sem sentido”. Ele calou-se um pouco, sentindo uma emoção aquecendo seu sangue e
criando um bolo ligeiro na garganta. “Quando você não tem idéia definida de
coisa alguma, quando o seu mundo é composto apenas por etéreas teorias que tudo
explicam mas que não levam a qualquer conclusão prática, a literatura serve como
um derivativo ao alcance do tédio. O homem escreve sobre as páginas que se
apresentam à sua frente com a alma cansada, mas ainda aspirando a ideais que
estão muito acima deles, uma ânsia de se descobrir completo e unido ao mundo
que tenta compreender...” A sua voz tremeu um pouco, como se ele não soubesse
mais como completar o pensamento. Fixou os olhos em Rosana, ergueu a destra,
tentou esboçar um gesto que saiu tão impreciso quanto a forma das próprias
reflexões. “Eu não sei explicar”.
Foi
com ternura que Rosana achegou-se ao garoto, tomou-lhe as mãos e pousou-as
sobre as suas.
“Por
que precisa explicar? O importante não é sentir, como você me disse tantas e
tantas vezes neste mesmo quarto?”
Ele
aborreceu-se com a lembrança, levantou-se, olhou através da janela aquele
cenário tão conhecido das suas noites de insônia. Tão bom seria o mundo sem as
palavras, tão boa a vida sem os pensamentos insinuando-se no sangue, irrigando
os músculos, torrentes de dúvida e medo se estendendo aos gestos e perpetuando
a história da aflição e da dor... Alisou os cabelos que lhe irritavam os olhos,
tentando decifrar naquele silêncio repleto de grilos um segredo pelo qual
efetivamente valesse a pena morrer. Ah! Quantas noites devassara assim, o corpo
derreado na janela, estrelas coruscando num céu que se esvaía nas próprias e
infinitas profundezas, tudo indefinido, etéreo, fascinantemente inquietante...
Ah! O desejo sempre vivo de integrar-se àquele universo todo que lhe envolvia,
afastar de si o ódio enorme e profundo da vida em insano movimento, penetrar em
si mesmo e deixar de ser um indivíduo e tornar-se apenas uma coisa pensante, e
só, só, só!
Rosana
levantou-se, cingiu-se ao corpo do garoto. Puxou o rosto dele contra o dela,
contemplando-o de muito perto, transmitindo-lhe o seu hálito de menta em meio a
um respirar levemente alterado. Ele endireitou o corpo, cingiu-lhe a cintura,
esmagou-lhe os seios com a pressão de seu peito, e beijou-a com uma fúria
lasciva que estava a quilômetros de distância do desejo. Ficaram enlaçados, ela
com a cabeça apoiada nas espáduas dele, pensando em mil coisas, o coração
irrequieto, sentindo-se prestes a desfazer-se em arrepios por sentir, apertado
contra si, todo o calor daquele garoto que a intrigava e atraía – ele com a mãos
acarinhando distraidamente as costas da moça, as pálpebras derreadas,
tristemente preso ao contato doce da prima.
Subitamente
desprendeu-se daquele enleio, afastou-a rapidamente e precipitou-se na cama,
repentinamente desesperado. A garota assustou-se muito com a mudança de
atitude, recuou dois passos até encontrar o parapeito da janela, de onde, os
olhos atônitos, contemplou a face decomposta do primo.
“O
que houve?”, interpelou suavemente, uma nota de carinho vibrando na voz
cautelosa.
“Nada”,
respondeu Carlos, a face sombria. “Quero que você vá embora já... que me deixe
em paz... só isso”.
“O
que eu fiz?”, retrucou a garota, melindrada. O comportamento estranho de Carlos
a aborrecia muito.
“Nada...
só quero que vá embora”.
Carlos
deitou-se com o corpo virado para a parede, sem prestar atenção à prima, que se
retirou depois de contemplá-lo ainda por um minuto. Uma aragem suave entrou no
quarto, remexeu as cortinas, inquietou as resmas de papel dispostas em cima da
escrivaninha, despertou o caderno que, aberto, ergueu algumas páginas numa
sonolenta indagação. “Por que não consigo livrar-me desse permanente desespero?
O que me leva a tratar rudemente pessoas que não possuem nenhuma culpa?”
Apertou nas mãos a coberta, as unhas fazendo pressão contra a fazenda felpuda.
“Oh! Não fosse essa convicção de estar representando uma farsa!”
Sentou-se
na cama, agarrou o celular que deixara sob o travesseiro, e discou um número.
Ouviu o chamar ritmado e insensível repetir uma, duas, três, seis vezes, até
uma voz rouca e indolente murmurar “Alô?”.
“Gustavo?”,
pronunciou Carlos lentamente. Do outro lado da linha, o moço respondeu apenas,
com a mesma voz sonolenta: “O que você quer? Acho que não deve ter desaprendido
a ver as horas e a proceder com o mínimo de conveniência nas suas relações, não
é? Por isso, irei pedir a você que...”
“Deixe
para lá as conveniências e o horário, preciso dizer-lhe uma coisa. Eu tive um
sonho muito estranho. A impressão que ele produziu em mim é difícil de ser
explicada, e o significado dele escapa-me. Preciso contá-lo a alguém, por isso
elegi você para a tarefa de escutar-me. Ouça. Eu matava, com um talho na
garganta, uma pessoa de fisionomia idêntica à minha, e depois gargalhava, cheio
de crueldade, como se fosse um sádico. O problema não é o fato de eu ter
sonhado a morte de uma pessoa assassinada por mim, nem ter rido como um maluco
depois de tê-lo feito, mas o fato de a pessoa aniquilada ter um semblante igual
ao meu... E como estava desesperado o semblante daquela pessoa! A boca
contorcida, os olhos raivosos e perplexos, como se ainda não tivesse entendido
que estava morta, morta...”
Gustavo
pareceu escutar com atenção. O mau-humor por ter sido acordado durante a
madrugada desaparecera, o que sobrara era tão somente pasmo. Ele era um grande
amigo de Carlos. Juntos desenvolviam conversas eivadas de questionamentos e de
uma filosofia incipiente, mais teórica e etérea que prática e sistematizada.
Escutou ainda algum tempo o relato do sonho do outro, a face séria escondida no
escuro, a orelha latejando devido à pressão do celular.
“Não
ocorreu a você, Carlos”, manifestou-se ele, “ que esse tipo de sonho não é mais
que uma espécie de antevisão do nosso futuro? Digo nosso, porque comungamos de
várias concepções, teorias e filosofias que nos lançam em dúvidas sempre vívidas
e poderosas. Nós relativizamos tudo em nossas vidas, Carlos, e o fizemos cheios
de uma convicção orgulhosa...”
“Calma”,
interrompeu Carlos, a voz aparentando confusão, “ está me dizendo que esse
sonho não é mais que a demonstração de um estado psicológico doentio em nós
dois? Está me dizendo que nosso futuro é o suicídio? “
“Não
é isso”, redargüiu Gustavo. “O que digo é que nós, ao abdicarmos de nossos
dogmas religiosos, ao adotarmos uma postura de indagação permanente e
abrangente, ao colocarmos um ponto de interrogação na moral, nos costumes, no
nosso lugar no mundo, no objetivo de nossas vidas, nós fomos excessivamente
cruéis conosco. Destruímos nossos baluartes, e nos permitimos viver sob o signo
da pergunta. Rejeitamos como inverídicas as verdades que a religião nos deu no
seu pacotinho de preceitos cheios de mofo, buscamos nos livros e nos
pensamentos uma verdade pela qual pudéssemos viver, mas nessa busca nós
perdemos a base sólida que nos sustentava. Caímos, e o impacto quebrou algo
dentro de nós. Para o resto da vida, carregaremos uma fisionomia atormentada,
cujo reflexo será sempre idêntico ao de um espelho quebrado: os vários pedaços
dispostos a reverberar nossa imagem, ainda que lindamente unidos uns aos
outros, não deixarão de apresentar uma imagem fragmentada, confusa, avessa à
harmonia. Eu cheguei a essa conclusão há muito tempo, e cada vez me convenço
mais de que ela será a única certeza que me guiará doravante. Nós procuramos,
Carlos, uma verdade que fosse diferente daquela que nos foi entregue desde a
infância, uma verdade que fosse produzida por nós mesmo em nossa peregrinação
pelo pensamento e pelo sonho, mas a conclusão a que cheguei apenas me assegura
que terei sobre mim, até a morte, a inexorabilidade do sofrimento. E esse sofrimento
tem algo de diverso do sofrimento das pessoas que não indagam sobre as bases do
seu próprio ser, pois ele é mais profundo e poderoso naqueles que buscam um
sentido fora dos muros dentro dos quais nos vimos nascidos. Ninguém que se
atreva a pensar pode escapar à insígnia do desespero”.
Carlos
não objetou nada até Gustavo terminar a fala. O tom tranqüilo do outro o deixou
pensativo: ele falava de sofrimento e desespero constantes, mas a voz não traía
nenhuma emoção adequada à seriedade do assunto. Notou-lhe essa contradição.
“Você
não me entendeu bem. Meu ser, como o seu, terá sempre sobre si o peso dessa
crueldade inconsciente, dessa angústia, dessa desolação. Mas eu amo a vida, e
embora não veja nela senão uma sucessão de desgraças, há uma graça e um encanto
em seus prazeres, que reluto em deixá-la. Já leu Hamlet, não? O príncipe dinamarquês alega que as pessoas não se
matam e suportam as agruras por medo do desconhecido. Certo, muito bem, mas
isso não resolve o problema. Vivemos com medo e pelo medo. A resposta está
nessa afirmação? Se estiver, somos todos uma espécie depressiva e covarde,
submetida apenas a uma Vontade universal, como queria Schopenhauer, que se
nutre de desejos continuamente perseguidos, saciados, mortos e ressuscitados. A
resposta está também na Vontade? E por que não estará também na liberdade
impossível de se renunciar, como também a queria Sartre? Para onde olhemos,
para onde nos coloquemos a vislumbrar um sentido, esbarramos em conceitos
endeusados, em absolutos filosóficos que nos prendem tanto ou mais que a
religião ou a moral, e por fim num necessário motivo final. Nossas ações
precisam estar marcadas pela sombra teleológica. Se não está, é irracionalidade
que não se coaduna com a natureza humana. Se está, é ação condicionada a se
repetir até descortinar uma finalidade maior que nós próprios, uma ação que
ultrapassa nossa compreensão e apenas nos permite indagar novamente sobre a sua
razão suficiente. É um círculo vicioso, que os idiotas que criam sistemas de
idéias reputam como passível de ser vencido através da delimitação de um espaço
conceitual que sintetize e explique o homem. Mas nós, os artífices da
indagação, os obreiros das perguntas que rasgam entranhas e dilaceram a vida,
os pedreiros que destroem as casas sob as quais repousam e depois escondem-se
sobre os escombros, palpitantes e impotentes, nós vivemos com essa condição
irrenunciável de espelhos quebrados lutando para esquecer a própria imagem
partida, fitando o mundo com os olhos fechados, porque ele também não é mais
que um espelho de dimensões imensuráveis partido em pedaços grandes o
suficiente para ocultar sua face fragmentada”.
O
vento ainda batia nas cortinas, as páginas do caderno de Carlos erguiam-se de
quando em quando, revelando algumas linhas impossíveis de se distinguir na
penumbra.
“Se
eu disser que já havia pensado nisso...”
“Você
já teve todos esses pensamentos”, interrompeu Gustavo. “Não só os teve, como
ainda os acalenta dentro de si, e certamente só faltou externá-los. Eu já os
havia desenvolvido, e aguardava apenas para dizê-los. Mas não se preocupe tanto.
A sua prima está aí, não está?”
Carlos
desligou, abrupto. Ergueu-se, foi até o banheiro, lavou o rosto. Examinou, pormenorizadamente,
o rosto que se refletia na superfície lisa e perfeita do espelho. Depois
enveredou pelo corredor escuro, cujos quadros, pendentes das paredes, esboçavam
formas diáfanas. Estacionou uns instantes em frente ao quarto de hóspedes,
refletindo. Foi com um leve rangido, que soou como um gemido das dobradiças
ásperas, que a porta abriu-se cautelosamente, para depois ser fechada
cuidadosamente, como para proteger um segredo.