quarta-feira, 30 de abril de 2008

Ponto de Ônibus

Eu esperava o ônibus, resignado. O sol batia-me no rosto, ofuscava-me os olhos. Cobria-os com a mão, mas a claridade, coada pelo intermúndio dos dedos, fazia arde as escleróticas avermelhadas (tinha dormido mal, na noite passada). Nisto aproximou-se uma mulher trigueira, enorme, matronal. Perguntou as horas. Tinha sardas na pele, um nariz grosso que se assemelhava a um nariz suíno, e olhos azuis, cristalinos. Respondi e ela agradeceu delicadamente, num gesto que deve ter considerado oportuno. Calei-me. A mulher também emudeceu. Mas continuou a olhar-me obliquamente com seus olhos enormes, sorrindo levemente. Senti-me aborrecido, muito mais do que até então me sentira. Sentia um insidioso asco infiltrar-se nos meus pensamentos, um asco persistente que vazava daquele oceano circular que circundava as pupilas da mulher. Encolhi-me, nervoso. Estalava os dedos, apertava-os uns contra os outros, mirava a calçada de concreto cinza, cheia de frinchas nas quais crescia um matinho viçoso. Afinal levantei-me – o sol golpeou-me o rosto com energia, mirei o semblante da mulher – perturbaram-me os seus olhos agora translúcidos, mudos, ansiosos, desgraçadamente claros – levei as mãos à fronte com se estivesse verificando a sua temperatura ou secando o suor... inquietantes, os olhos da mulher... perplexo, os olhos ardentes, comecei a caminhar aceleradamente, sem voltar-me. Senti atrás de mim o ronco do ônibus que se aproximava... não me importei. É preciso andar, pois há perigosos, mortíferos olhares num ponto de ônibus.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Pegajosidade, barro - e sangue

Para Lize, um presente sujo de afeto


Numa tarde inexpressiva, Homem e Mulher caminham lado a lado numa rua de areão úmido, coberto por uma pegajosa mistura de água e barro.
Não se olham. Seus rostos estão virados para frente. Caminham inexoravelmente calados, embora falem banalidades. Porque no fundo de suas palavras há um constrangido silêncio.
Homem está comovido por estar tão próximo de Mulher. Sente por ela qualquer coisa que o agrada, uma afeição doce que lhe escorre pelo interior do corpo até sair transvertida num aliciador sorriso permanente. Deseja-a também, mas isso é outra história. Desejo se sente por qualquer mulher bonita. Homem experimenta um sentimento perplexo de inesperada suavidade perante Mulher, é tomado por carinhoso ardor quando está com ela; um ardor que o deleita e o obriga a procurá-la com o olhar ávido, um ardor que o obriga a tocá-la num gesto discreto, sem alarde. Ama-a?
Os passos de Mulher são céleres. Seu tênis é preso rapidamente pela sola ao chão viscoso, mas liberta-se rapidamente, e a marcha continua. Seu pensamento é recôndito, se oculta nas regiões abissais de um oceano sombrio, surpreendentemente castanho na superfície e negríssimo no fundo. Mulher sorri amiúde para Homem. Sente por ele apenas amizade, a desinteressante e banal amizade do cotidiano. No íntimo talvez o despreze, mas não ousa afirmar isso a si mesma: limita-se a sorrir, meiga, invólucro de feições.
Os sentimentos dos dois emaranham-se numa teia larga, invisível, incontornável e inescapável para ambos. Estão unidos insensivelmente, hesitantes e cegos. Buscam-se por motivos vários – que não precisam ser narrados, porque são simples, fáceis, metafísicos, fortuitos. Ocultos e sonolentos.
Homem e mulher caminham lado a lado, na tarde inexpressiva. Jamais chegarão ao seu destino, pois o instante que os une é eterno e intransponível. Buscam-se na escuridão, apalpando-se à distância. São eles mesmos, indesculpavelmente eles mesmos. Caminham juntos, cegos e silenciosos, sob o céu cinza, fora do mundo. E do tempo.

Vanildo

terça-feira, 1 de abril de 2008

O Enterro

Para A., como extirpável lembrança


A terra breve e as construções cimentadas das circunvizinhanças ainda estavam intumescidas pela indecisão da aurora quando Versamann despertou. Primeiro abriu os olhos de pálpebras endurecidas e piscou-os durante algum tempo, para em seguida soerguer o tronco e olhar perplexamente o quarto. Os móveis e as paredes guardavam um modesto tom azulado que vinha filtrado das janelas cerradas. Versamann sorriu e isso o fez desinteressadamente satisfeito. Levantou-se, despiu o pijama e postou-se definitivamente nu em frente ao espelho, observando seu rosto onde pretejava uma hera negra e cabeluda.Ficou refletindo durante uns minutos, imóvel.”Como é estúpido acordar”, pensou. “O silêncio do sono se assemelha de tal forma com a morte que dormir pode ser considerado um ato vicariamente nostálgico, de substituição.” Essa reflexão o agradou tanto que atentou nela com exclusividade, tentando condensá-la num aforismo dramático, de grande efeito estilístico. “Ora, estou perdendo tempo”, ponderou, “minha mente está inventado pretextos para esquecer-se do que determinei a mim mesmo.” Sorriu amargamente, como se só agora tivesse lembrado de algo importante. “Isso, hoje é o dia do meu dever. O dever.” Coçou o queixo. O céu se recortava cor de chumbo contra a janela. Vestiu-se.

“Credo, rapaz, você está parecendo o demônio”, disse-lhe a mãe – uma estranha figura banal – ao vê-lo vestido totalmente de preto. Versamann surpreendeu-se como fato dela estar acordava àquela hora. A mãe ficou observando-o com olhares exprobratórios e calados. Versamann notou, no espelho que se equilibrava na parede defronte dele, que sua própria pálida fisionomia dura cingia-se no vidro à loura parte posterior do crânio da mãe. Aquilo lhe comoveu indizivelmente, com uma intensidade tão exclusiva que ficou irritado com a própria comoção. “Não tenho fome”, disse sem ênfase, olhando a mesa posta. Caminhou marcialmente até a porta.

Na rua observou a neblina da madrugada que se fundia ao céu num movimento lento e inflexível – ou seria a sua vista fatigada de absorver a claridade do sol? Contemplou com curiosa estranheza a rua de areão úmido, as casas indistinguíveis na cerração; passou uma pessoa e Versamann não se espantou ao notar que no lugar de um rosto ela tinha uma caricata máscara embaçada.

Versamann se sentia apaticamente desperto, a poeira milenar da raça humana o envolvia num torvelinho de cavernosas lembranças de amor, suor, sangue e sofrimento. Postou-se no meio da rua, a neblina densa ao redor de si. A boçalidade daquela rua triste não o agredia, estava já acostumado a odiá-la constantemente em suas noites sombrias perenemente atravessadas por febres e presságios. A civilização humana lhe inspirava o mesmo desprezo; não a amava como dizia a todos; a hipocrisia, ah!, a moralidade dos caminhos simplórios, o infinito temer sem reagir. Versamann vivia como uma larva repulsiva que se violentava intimamente para continuar vivendo em meio a outras larvas de igual asquerosidade; experimentava satisfação apenas na escuridão do seu quarto, bloqueado e trancado por dentro, o mundo fragmentado na janela, os fios da normalidade pendendo impotentes ante a liberdade de sua reflexão. Mas havia o sentimento, aquele sentimento que escarvava seu âmago e o suavizava – era preciso destruí-lo. Era preciso destruí-lo? Versamann dobrou fortemente os dedos em direção às palmas.

Era preciso dar o golpe de misericórdia, dizia uma sombra negra que grassava nos seus pensamentos. Era preciso destruir à lâmina de espada e a fio de machado num golpe seco e breve, profusamente sanguíneo. Era preciso, era esse o seu dever... “A fortaleza, a fortaleza da escuridão”, murmurou Versamann ao ajoelhar-se e sentir inúmeras pedrinhas atritarem seus engonços. “É preciso! E que seja aqui mesmo”, disse ainda com convicção ao dobrar o pescoço ao golpe.

Quando desgrudou as pálpebras, Versamann sentia uma violenta enxaqueca. Enxergou de pronto um pequeno caixão de chumbo perto de si, um pequeno caixão de alças douradas das quais pendiam, como cipós, fitas inquebrantáveis onde se podia ler em caracteres negros: Requiescat. Versamann resfolegava suando, as mãos contraídas no peito, a boca entreaberta. “Acabou, ou quase”, refletiu com amargor. Lentamente Versamann adiantou-se para o caixão, segurou as alças, preparou os músculos e as articulações, e num arranco o suspendeu. A neblina agora estava mais cerrada; era esquisito, mas o céu parecia inclinar para a terra, pois o tom de chumbo incorporava-se à neblina de tal maneira que já não se podia distinguir sequer as casas que circundavam a rua.

Versamann começou a andar em linha reta, sem se importar em ver-se privado de enxergar o caminho. Esse detalhe tão preocupante, que o atormentaria atrozmente noutra ocasião, quase não o interessava agora. Necessitava caminhar, necessitava manter a frieza e o raciocínio claros, lúcidos... necessitava sobretudo livrar-se daquele caixão de chumbo. Sabia intuitivamente que aquela neblina o levaria a algum lugar preparado para receber o ataúde, provavelmente preparado por ele mesmo, embora não pudesse se lembrar quando nem onde. A névoa-chumbo crescia a sua volta e o envolvia como uma aura. “Sem hesitar!”, exortava a si mesmo.

Andou muito tempo. Perdera totalmente a noção do tempo. De vez em quando afloravam reminiscências em seu pensar embotado, mas elas eram inconsistentes e frágeis, como se fossem apenas idéias irreais.

Chegou. Devia ser um cemitério, mas um cemitério singular, sem cruzes nem leitos de pedra. Versamann caminhou até uma cova rasa e aberta.

Sentia um violento calafrio eriçar-lhe os pêlos dos braços, mas continuou. Um espasmo que lhe prejudicou a precisão dos movimentos percorreu seus braços ao depositar o ataúde do sentimento parasita na cova. Cobriu-a de terra, mas sem pensar, a face inexpressiva, olhos enxutos, salgados. A neblina penetrava insidiosamente a sua pele, as veias carregavam um fluido denso, rançoso de desgosto, decepção e martirizante alívio. Matara-se? A lembrança da mãe, em especial a parte posterior do seu crânio refletido no espelho, emergiu num gemido à superfície de suas idéias, intumescida de vago desespero.

A cerração era total.

Num impulso convulso de dor Versamann ajoelhou-se sobre a cova. E mal teve de murmurar uma sílaba de reconciliação e saborear um gelado grão de são que lhe roçara a comissura dos lábios porque a neblina, num gemido compridamente silencioso, o absorveu.

VANILDO SELHORST DANIELSKI