Uma insônia persistente roubava-me as
horas escassas de descanso. Era com calado desespero que me virava no leito um
tempo sem medida, refletindo com as pestanas pesadas, as tábuas rangendo sob
meu corpo, mosquitos fastientos voando em espirais insidiosas sobre minha pele,
zumbindo uma sinfonia de aborrecimento que invadia meus sentidos e os acordava
agudamente, doloridos como se feridos por facas. Discutia, horas sobre horas,
com os meus eus recônditos, entretido num monólogo pluralista repleto de
considerações filosóficas, réplicas mordazes, lacunas insuperáveis que
estacionavam o meu cansaço sobre as bases florescentes de uma utopia feita de
segredos. Conseguia conciliar o sono somente quando a aurora ensaiava sua
melodia de luz no horizonte azulado do alvorecer.
Daquele tempo, o que minhas
reminiscências guardaram corresponde a cristais de emoções que se incrustaram
no mosaico de minha alma e marcam sua influência nos meus passos. Era com
profundo tédio que me erguia pela manhã, sonolento e indiferente. O dia era de
um aborrecimento atroz, as imagens da realidade impunham-se aos meus olhos
fatigados e tornava-os inexpressivos. As pessoas eram vultos confusos que eu
mal distinguia dentro de minha obsessão. Com os olhos espetados nalgum ponto
invisível do espaço, as pernas percorrendo um caminho persistentemente
semelhante a todos os outros que já trilhara, indagava-me repetidamente sobre
os mistérios que minhas cogitações não elucidavam. Via-me transportado ao pico
planáltico de um pedestal particular, imune e absoluto, estático e inacessível,
tentando decifrar os enigmas de um mundo físico que parecia viver na
dependência estranha de um outro mundo, muito mais belo porém incompreensível.
Distanciava-me das coisas e das pessoas com veemente rancor, preso numa espécie
de torre quimérica, levemente reverberante, convictamente pronto a repudiar as
agruras rotineiras da vida diária como meras reproduções de existências
medíocres. Assim devorava as horas de luz e calor. Aguardava, expectante, a luz
natural desmaiar sob o fluir do tempo, para então contemplar, com semblante
impassível, sentado num pedaço desbotado de muro a noite desenrolar-se num
langor de amplidão, bebendo café e deleitando-me com a doce sensação de
inatividade que me dominava.
Foi numa noite dessas, quando a
atmosfera resplandecia com a alegria de final de ano, que decidi abandonar os
dogmas que me transformavam num escravo dissimulado. Passei a madrugada
meditando num mesmo lugar, o celular vibrando insistentemente, os postes
públicos incidindo o seu costumeiro facho de luz amarelenta sobre a rua e as
árvores silentes. Minha casa estava tomada por curiosos familiares que me
fitaram com mudo encantamento e surda raiva no momento em que entrei na sala e
fitei a todos numa interrogação atônita. “Mas o que é isso? Invadiram a minha
casa por quê?” Lembro minha mãe, cujas cãs acentuavam-se numa medida dolorosa
para a sua vaidade, olhar-me entre lágrimas com uma expressão de repulsa, como
se adivinhasse em meus olhos o que estava prestes a dizer. Volvi os olhos para
um canto, percebi que algumas das minhas tias estavam ajoelhadas ante uma
imagem de Nossa Senhora da Aparecida, orando contritamente. A fúria dominou
meus sentidos, experimentei um desejo fulminante de gritar àqueles entes
ansiosos o quando me enojava a sujeição deles aos dogmas e às verdades. Depositei
sobre a mesa as chaves que apertava na mão direita, e solene, sem escutar as
perguntas apressadas e nem responder aos abraços apertados que estreitavam meu corpo,
proferi uma mensagem que desenhou em seus rostos uma estupefação impotente.
O
menino seguia o pai com a alegria transparecendo no rosto pequenino. Fazia tanto
tempo que não saía com o ele sozinho, os dois entregues às cumplicidades
insubstituíveis que se estabelecem entre dois amigos que se conhecem
profundamente, que ele desejava tornar esse momento único, de modo que nem o
tempo ou as saudades fossem capazes de apagar de suas lembranças a impressão
vívida e confortadora que sentia.
Os
dois passaram a tarde executando as tarefas mais diversas – lendo, jogando
futebol, construindo um carro de rolimã, pescando, arrumando a casa de campo
que se bagunçara com os seus esforços prazenteiros. Meio exaustos, sentaram-se
na relva para observar o crepúsculo que se avizinhava da nesga do matagal que
se erguia, longe e belíssimo.
“Pai”,
murmurou depois de hesitar algum tempo, “o senhor acredita em Deus?”
O
pai olhou-o um tanto surpreso com a intempestividade da pergunta, endireitou o
corpo para que os olhos dos dois pudessem fitar-se diretamente, guardou numa
caixa depositada ali perto uma pedra que estivera segurando desde que sentara
na relva.
“Por
que está perguntando isso?”
“Porque
o senhor nunca me disse nada sobre isso. Perguntei algumas vezes à mãe, mas ela
sempre desvia os olhos e faz uma cara brava, sem responder nada. Fiquei
curioso...”
.
O pai pensou um momento antes de responder. Seu peito inspirou profundamente e
os olhos repousaram novamente sobre o sol alaranjado e dormente
“Eu
não sei o que dizer sobre isso, filho. Às vezes, fico pensando sobre isso
durante bastante tempo, mas nunca chego a uma conclusão. Sou tentado a
acreditar firmemente na existência de um Deus benfazejo que nos governa
bondosamente, mas também sinto uma forte descrença transparecer em meus
pensamentos. Nunca gostei de ir à missa, obedecer àqueles ritos cheios de mofo
e pó que os padres e beatas tentavam-me incutir. Li a Bíblia em algumas
ocasiões, por curiosidade, e fiquei com a impressão de que a o livro sagrado
não fala do mesmo Deus em todas as passagens. No antigo testamento, fiquei com
a impressão de que o Deus dos hebreus era um déspota consumido pela sede de
vingança e punição, exigindo de seus seguidores uma virtude maior do que aquela
que os humanos efetivamente podem demonstrar. No novo testamento, Deus muda sua
face a tal ponto que, num gesto repleto
de bonomia, chega a nos ofertar seu único filho para pasto de nossa fúria. Num
perdão amplo e doloroso, elimina de nossos corações a culpa e o pecado pela
morte Daquele que assassinamos. Não foi somente essa contradição que vislumbrei
na religião, mas muitas outras, que repeti pela vida afora frente a teólogos,
religiosos e outras pessoas de grande fé. Sempre fui apupado pela maioria e
aplaudido por poucos. Mas, filho, não posso dizer que tive felicidade nesse
caminho de quase descrença. A maioria das pessoas não perdoa o ateísmo, ou
mesmo a sombra dele, e relega o homem que o manifesta às regiões abandonadas de
um desprezo custosamente ocultado. Vivi muito tempo triste e cabisbaixo,
desejando uma fé sólida como a daqueles que me rodeavam, sabendo, entretato,
que jamais seria capaz de alcançá-la, pois meu coração foi forjado de forma
diversa à do coração dos outros. Porém, superei a maioria dos dissabores e
adquiri uma certa tranqüilidade íntima que, creio, deve ser muito mais saborosa
que o gozo religioso.Tenho um filho, uma situação estável, uma felicidade
imensa de olhar as coisas de mundo sem pressa e com profunda reverência: isso
basta.”
O
menino ainda não estava satisfeito. Queria uma resposta definitiva que o
guiasse também, porque a perplexidade que sentia frente às discussões ásperas
do mundo perceptível com o mundo utópico relatado por seus parentes resultava,
em seus pensamentos, numa batalha onde a crença e a fé perdiam um espaço cada
vez maior.
“Mas
o senhor acredita ou não? Ser tentado a acreditar não é igual a acreditar ou
não acreditar. É uma indefinição...”
O
pai suspirou e tocou o ombro do menino.
“Juninho,
imagine que exista uma verdade única e poderosa, oculta em algum ponto distante
do universo. Imagine que ela está tão distante, e suas afirmações são tão
categóricas e certas que o gênio humano jamais seja capaz de entendê-la de
maneira conveniente. Imagine também que, em algum dia indefinido, os homens
consigam encontrá-la e desvendá-la, submetendo-a em seguida à apreciação dos
seus semelhantes. Decifraram-na em todos os seus meandros, apresentaram-na
cheia de pompa, única guia nova do ser humano. Muitos se regozijam, outros se
lamentam, há um alvoroço tremendo em todos os rostos. Por fim tudo se acalma,
os homens e as mulheres acostumam-se ao domínio da verdade. Contudo, depois de
algumas semanas, uma onda de depressão percorre as fileiras da sociedade.
Intrigados, os homens que desvendaram a verdade perguntam a alguns dos
atingidos pela tristeza o motivo de apresentarem semblantes tão pesados. ‘Nós,
senhores’, responde um deles, ‘ não pedimos que nos trouxessem a verdade. O que
nos embriagava as vidas era a suspeita, a crença, e mais que tudo, a simples e
importante possibilidade. Não desejávamos a certeza, preferíamos a dúvida. O
que nos resta? A verdade aí está, imutável, única, não está sujeita à
discussão. Fomos arrancados da nossa condição de pensantes e criadores,
tornamo-nos simplesmente contempladores da essência, do mistério, e agora
estamos acorrentados à necessidade de nos submetermos. Despedimo-nos da
transitoriedade, estamos agora presos ao momento presente, à direção definida,
rumo a um futuro cujo horizonte estará delimitado pela certeza, sempre, sempre
a certeza...’ Os homens que ofertaram a verdade aos seus semelhantes
perturbaram-se, e viram nascer, aos poucos, um movimento surdo que beirava as
raias da irrealidade. As pessoas que o abraçaram passaram a viver simplesmente
sem comentar, perceber, querer ou fitar a verdade, como se ela não existisse ou
estivesse ainda inacessível. E contudo ela permanecia ali, visível, palpável,
fitando a todos na sua perenidade irremediável. Aos poucos o templo erguido ao
culto da verdade foi-se esvaziando, cada vez mais raras e pobres as oferendas
que se depositavam no seu altar luxuosamente ornado. O movimento tinha-se
alastrado tão intensamente que já não imperava na sociedade a influência da
verdade, e sim o estigma renovador da dúvida. Os homens tinham escolhido a
cegueira, a surdez, a imaginação ampla e descompromissada com os liames reais -
e a verdade ficou lá, encarapitada no pedestal construído para abrigá-la eternamente,
empoeirada e faminta de atenção, a esperar pela idolatria dos homens que jamais
se ajoelhariam novamente à sua frente.”
O
pai calou-se um momento, sorriu para o menino, e levantou-se. Ergueu a caixa
que continha a pedra guardada, e arrojou-a longe.
“O
importante, meu filho, não é desvendar a verdade, ou como quiser chamá-la. O
importante é viver sabendo que ela existe simplesmente para nos tornar melhores
do que somos, sem necessidade de uma revelação ou de um apocalipse que coroe a
glória de não-sei-o-quê. Se a verdade existe, prefiro que jamais seja
descoberta.”
Pouco depois de ter dito tudo o que
pensava à minha família, fiquei sozinho, sem receber vizinhas, por umas duas
semanas. Refleti que o escândalo devia ser grande ainda nas consciências
estupefatas, sorri satisfeito e dispus-me a ficar recluso em casa, lendo,
ouvindo música clássica e escrevendo. Ao fim de quinze dias, uma batida na
porta. Era meu tio Alberto.
“Juninho”, ele começou, depois de
sentar-se, “vim porque não engoli aquilo tudo o que disseste. Gostaria que me
explicasses por que quiseste adotar esse tipo de pensamento, por que repudiaste
todas as tuas crenças que sempre foram as nossas, as de todos nós, por que...”
“Tio”, atalhei, “ é irrelevante
perguntar acerca do porquê. O que realmente interessa é que decidi não seguir
mais os ditames religiosos que vocês sempre ensinaram e incentivaram. Foi uma
decisão madura, que eu já analisava há muito tempo. Não há o que discutir, há
apenas o que aceitar,se desejarem fazer isso.”
“Mas”, retrucou ele, “sabes que nossa
família nunca admitiu o ateísmo. Sempre fomos inimigos de todas as formas de
descrença e heresia...”
“Heresia!...” interrompi, irônico. Uma
lufada de vento sacudiu as persianas, uma réstia de luz iluminou rapidamente um
recanto escuro da sala.
“Sim, heresia! Não há outra palavra
que possa definir melhor o que estás fazendo conosco. É uma vergonha, uma
tremenda idiotice, uma falta de respeito! tua mãe está a ponto de ter um
ataque. Ela está tão idosa, coitada! E tu...”
“Eu estou preservando aquilo que eu
acredito ser o correto e o verdadeiro. Admito que comuniquei meus pensamentos
de forma rude, mas ao menos salvaguardei a minha sinceridade. Se há uma coisa
com a qual não podem acusar-me, é com a insinceridade.”
“Não é honroso ser sincero quando isso
implica em desqualificar um conjunto de tradições religiosas que nunca fizeram
mal a ninguém.”
“Claro, claro. Aqueles que foram
maltratados pela intolerância religiosa nunca reclamaram. Ou estavam mortos, ou
tinham as línguas cortadas, ou eram emudecidos de outra maneira menos incômoda.
Efetivamente, a reclamação deles nunca chegou a melindrar os sentimentos puros
de quem só pensou, diuturnamente, no bem da humanidade.”
Tio Alberto levantou-se, enraivecido.
Detestava a ironia. Fitou-me com um desprezo tangível nas pupilas diminutas. O
cabelo, longo, caía-lhe sobre as maçãs do rosto, o rosto brilhava, suarento.
“Ninguém está falando dos erros
humanos realizados por aqueles que detém a mensagem de Deus.”
“Sei, são apenas os ensinamentos
profundos e verdadeiros, dignificantes da alma humana, que merecem ser
escutados e obedecidos. Prefere então que eu ironize a doutrina religiosa?
Posso fazer isso sem a menor dificuldade.”
Um riso rancoroso entortou-lhe a boca.
“Não quero que diga nada. Tudo o que
sai de tua boca descrente é podre”.
“Oh, mas o que é isto? Discriminação
de credo, titio? A constituição brasileira não admite, hein. E, se não me
engano, deve ser pecado também – afinal, o senhor está desmerecendo um
semelhante, está incorrendo na ira e na falta de caridade contra um pobre homem
que não consegue conceber a graça divina nas obras portentosas da natureza.
Acho bom o senhor pedir desculpas, como um bom menino, e ir-se confessar com o
padre mais próximo. Há uma igreja aqui próxima, todas as manhãs eles tocam,
britanicamente, o sino exatamente às seis e meia da manhã. O padre é um senhor
barbudo, de olhinhos empapuçados pela gordura, a transparecer uma permanente
preguiça inata, mesclada com uma paciência persistente que recebe a todos com
uma condescendência lenta e calculada... creio que ele deve ser a pessoa mais
indicada para sanar-lhe todos os pecados da intemperança e da fúria. Já
imaginou o desastre que não seria se o Juízo Final começasse dentro de alguns
minutos e o senhor se apresentasse ao Altíssimo assim, repleto de pecado e
maculado por essas palavras acerbas? Apresse-se, titio, o senhor não tem muito
tempo!”
Tio Alberto bufava. Olhou-me um bom
tempo e depois sentou-se, os olhos cansados. Desorientado, apertava as mãos em
desalento, respirava profundamente, fitava-me de soslaio. Incomodado,
levantei-me e fui ao parapeito da janela. A rua, plácida, com muitas árvores
agitando-se impulsionados pela aragem matinal. O rebuliço ventoso levantava uma
discreta cortina de pó. Aquele quadro transmitia-me um sentimento quase lírico,
uma sensação que ultrapassava as barreiras de minha sensibilidade e repercutia
de um modo afônico dentro de mim.... uma tranqüilidade soberba que contrastava com a situação incômoda que
me enfadava dentro da sala.
“Tio”, murmurei, de costas para ele,
“não lhe passou pela cabeça que, ao dizer tudo aquilo à nossa família, ao
colocar-me numa situação em que facilmente seria criticado e desprezado, em que
o resultado último poderia ser o abandono e a solidão, eu não teria pensado em
todas as conseqüências com o máximo de escrúpulo? Dificilmente alguém
proferiria tudo o que eu proferi se não estivesse investido de uma segurança
corajosa. Tio”, girei o corpo, voltando a contemplá-lo, “eu já não queria a
hipocrisia calculista de quem crê em Deus por conveniência. Eu não desejava
mais o horror indigesto de quem se entrega a um credo sem a convicção da fé. Eu
não queria mais aceitar a verdade que me ostentavam como a guia única da vida, não
conseguia mais entregar-me à comoção de observar as coisas misteriosas e
simplesmente forjar respostas paliativas, refrigérios que não assassinavam as
minhas dúvidas. Era uma escolha que se me impunha, e eu a fiz, em detrimento
daquela que vocês, por vias diametralmente oposta, elegeram. Esse é o resumo.
Espero também que seja o epílogo”.
Tio Alberto articulou uma réplica
tímida. Já não conseguia mover-se em prol de coisa alguma, um aperto na
garganta constringia-o ao silêncio. Tentou ainda uma acometida:
“E achas que viver sem o consolo de
Deus fará de ti uma pessoa mais feliz?”
Sorri, dessa vez com bonomia.
Apiedava-me do seu cansaço, via a velhice sulcar o seu rosto e tornar-lhe
encanecidos os cabelos, poucos anos antes, abundantes e negros. Percebia que
aquela era uma vida condenada à decadência gradual – uma queda lenta e mortal
que o paralisaria num torpor preenchido de desesperança, apenas alentado pelas
preces e a crença num Deus que lhe confortaria a lamúria de viver com o corpo
degradado com a promessa de eterna bem-aventurança num outro mundo, reluzente
de promessas de satisfações e sorrisos. Toquei o seu ombro:
“Tio, acredito que a felicidade não
seja uma dádiva gratuita ou aleatória, e sim a conquista de uma situação onde a
dor é pouca ou nenhuma. A ordenação misteriosa que criou o mundo, seja ela o
que for, não o fez para deixarmos de sentir a dor. A existência da dor é mais
sublime que o florescimento do riso, porque a dor nos submete à reflexão, à
mudança, à transformação. A eternidade da felicidade é algo tão irreal que não
a desejo sob hipótese nenhuma. Quero, sim, viver com a satisfação de quem
descobriu que o sofrimento e a dúvida são os legados inerentes à nossa condição
de homens, e que não deseja abandoná-los sob o pretexto de uma proteção celeste
ou as promessas de uma existência de prazeres. Quero viver, sobretudo, sob o
signo da contemplação reflexiva, o olhar-pergunta que não indaga, a palavra que
não responde, o pensamento que não se
submete a qualquer barreira. Eu não nego a existência de nada – acredito nas possibilidades infinitas da vida
e na perplexidade original e indescritível do homens frente ao mundo. É o único império sob o qual vale a pena
viver”.
Numa manhã de junho, fui acordado por
um garoto pálido, que com ar espavorido batia na minha porta e aguardava que
lhe permitisse a entrada apertando as mãos, certamente ansioso demais para
aquietar-se. Trazia um embrulho amassado, amarelado e desagradável ao toque,
que me entregou com uma pressa evidente de se desvencilhar da tarefa. Já
sozinho, abri o envelope: era uma espécie de intimação materna que me vinculava
à obrigação de comparecer frente à família inteira, no terceiro domingo do mês.
A missiva fora assinada por todos os familiares de que me recordava, e era clara
ao enunciar que ninguém ousaria convencer-me da veracidade das crenças que eu
tão publicamente renegara. O encontro teria mero caráter formal, diferente do
usual entre pessoas do mesmo sangue. Na mesma, exortavam-me a destruir a carta
tão logo tivesse apreendido tudo quanto nela se consubstanciava, e não
abdicasse de forma alguma ao comparecimento. O local do encontro era uma
fazenda quase abandonada que pertencia a nossa família, localizada no perímetro
rural de uma cidade periférica da metrópole. Refleti muito se deveria
efetivamente comparecer à intimação – já não tínhamos dito tudo quanto pudesse
importar para a situação? Por que seria necessário um novo embate, um novo
confronto de perspectivas que não podiam conciliar-se? Embora tivesse escrito de
forma tão surpreendente e solene que não pretendiam converter-me ao credo que
adotavam, não podia deixar de duvidar dessa posição tão indulgente. Decidi-me a
ir, movido mais pela curiosidade que pela necessidade de entender-me com os
meus.
Embora relativamente curta, a viagem
foi cansativa. O trânsito estava lento, a marginal resfolegava sob o bafo
quente dos motores que tornavam o ar frio uma confusão de sons e ruídos
desagradáveis. Já era final de tarde quando cheguei. O vento silvava, gélido,
inquietando as mirradas copas das árvores e torvelinhando as montanhas de
folhas secas que jaziam na relva. De longe, contemplei a casa de madeira ruim.
O telhado estava enegrecido pelas chuvas e a pintura quase totalmente
descascada. Um tom de desolação e abandono irremediável cobria como um véu a
imagem da fazenda meio agreste em sua quietude.
Era um lugar insólito para empreender uma reunião familiar, mas já não
me competia julgar os desvarios de uma família de fanáticos. Dispus-me a acabar
logo com aquilo. Marchei até a entrada, estaquei à frente da porta e olhei
ainda uma vez para as árvores melancólicas e turvas na semi-escuridão que se ia
construindo no horizonte.
Entrei lentamente, sentindo no rosto o
bafo de mofo que se desprendia das tábuas antigas. Embora imersa numa penumbra
que tornava difícil a distinção de qualquer coisa sólida, a casa parecia ainda
guardar um certo aconchego, uma ternura longínqua cuja percepção se devia mais
às minhas lembranças de menino que ao apreço às coisas vetustas. Com os braços
estendidos, tentando tatear alguma coisa para me orientar, cheguei ao centro da
sala, desorientado.
Repentinamente, como num acordo silencioso,
velas dispostas em círculos sobre as velhas mesas carcomidas de cupins
começaram a acender-se, iluminando todo o âmbito empoeirado da sala. Sombras
enormes desenharam-se nas paredes, rostos soturnos apareceram iluminados pela
luz bruxuleante. Eram meus familiares, todos vestidos de negro e com os
semblantes inquisidores. Estavam dispostos um atrás de cada vela, também em
círculo, e permaneceram silenciosos por vários segundos.
“Que brincadeira é essa?”, berrei
desconcertado.
“Permaneças calado até que te seja
dada a permissão para falar”, disse minha mãe num tom solene. ”Estamos aqui
para julgar o teu procedimento leviano e cominar-te uma pena que expie o teu
crime nefasto”.
“Crime?”, indaguei atarantado, fitando
todas as faces que agora pareciam de cera, dada a impassibilidade com que se
tinham revestido. “Não cometi qualquer crime, a consciência não me aponta uma
falha sequer nos meus atos que possa merecer essa qualificação. Que espécie de
tribunal ridículo pretendem imitar? Acreditam que na minha conduta exista
alguma indeterminação, algum indício de apodrecimento moral, que faça jus a uma
punição? E como podem se investir de prerrogativas punitivas? E com que
direito?
“Permaneças calado até que te seja
dada a permissão para falar”, repetiu minha mãe. “Contudo, em consideração às tuas
indagações, direi apenas que estamos investidos do poder sagrado ao qual nos filiamos
no dia de nosso batismo. Tu, que renunciaste às crenças que uniram e
construíram o nosso tronco familiar sob a égide da virtude e da religiosidade,
não podes compreender como o direito de punir nasce tão somente das
prerrogativas religiosas com as quais, agora, autorizamo-nos a composição deste
tribunal. Este tribunal é legítimo porque o direito ao qual tu reclamas não se
encontra nas leis ou tampouco na ordenação terrena deste mundo, e sim na
ordenação divina que nos foi ditada. Nós representamos o brado de Deus, o seu
poder manifesto e inquestionável, a sanha de seu braço poderoso: nossas
prerrogativas são tão inquestionáveis quanto a idéia de nosso Deus”.
“Idéia mentirosa, leviana e pútrida!”,
gritei. “Como um poder pode nascer tão somente de si mesmo? Como podem
reivindicar para si o poder de um Deus que só se revela no mistério, na dúvida,
na fumaça, e que ao mesmo tempo exige de nós uma crença inabalável, própria dos
seres perfeitos, sem ignorar que somos feitos de barro, de sangue, de
descrença, de indecisão? É sob essa bandeira irreal que pretendem construir a
minha punição? O que diz não tem sentido, mãe. O que fazem não tem sentido!”
O júri não titubeou. Nenhum deles
sequer esboçou um gesto de indecisão. Contemplei durante bastante tempo aquelas
faces que sinceramente amava, e cuja dureza agora ofuscava qualquer laivo de
ternura que eu pudesse demonstrar. Fitavam-me sem desviar o olhar, imersos num
silêncio abominável cheio de acusações e conclusões.
“Teu pai”, proferiu meu tio num tom
glacial, “também aninhou no espírito a descrença infalível. Não tens idéia de
como nos custou, há alguns anos, infringir a ele o mesmo júri que ora se abate
sobre ti. Ele tinha uma descrença ainda mais profunda que a tua, e no entanto
entregou-se sem resistência ao nosso jugo e pereceu sob a punição que incidimos
sobre a sua cabeça. Não espere misericórdia ou clemência no teu julgamento. Não
esperes ouvir aqui a acusação, a defesa e o libelo: eles já existem independentemente
do teu reconhecimento, já estão sendo processados no seu íntimo há bastante
tempo. Convocamos tua presença aqui tão somente para que pudesses atentar na
existência desse veneno que, a partir de agora, começará a penetrar a tua vida
e destruí-la. Abdicaste do sentido superior a todos nós, o significado humano
que nos identificava, e por isso já não mereces a existência que nós
engendramos para ti. Chocaste o teu medo particular com o nosso medo íntimo,
compuseste um estranhamento que nos repeliu mutuamente e tornou possível essa
situação de trágica calamidade. Os nossos medos já não são os mesmos, eles já
não se identificam, já não se reconhecem: são feitos de outra matéria e de
outros fluidos. Quando, ao destilar as tuas heresias sobre os nosso espíritos
atônitos, revelaste o teor inadmissível de teus pensamentos, já estavas
condenado ao desespero que, ora, será o sentimento mais vívido em teu seio. Não
te apercebeste, mas já naquele momento era possível ver o nosso julgamento
pronunciando-se nas circunvoluções de tua mente e externando-se numa diminuição
desesperada de tuas próprias pupilas. Sim, naquele momento, quando tuas pupilas
diminuíram a ponto de não se distinguir sequer o brilho negro que deveria estar
presente nelas por conta das palavras tão atrozes que exprimiste, naqueles
segundos de angústia recíproca, tu sorriste apenas para dissimular um
justificável desconforto – e o medo mais cru pintou-se em teus olhos...”
“Estão alucinados”, murmurei
balançando a cabeça, “não se explica de nenhuma outra forma essa...”
“Não há qualquer palavra que possa
explicar esta situação, meu caro”, interrompeu meu tio. “Esta conjuntura que se
ergueu por nossas ações tornou-nos seres irreconciliáveis. Enquanto tu descobres
em ti mesmo a impossibilidade de nos compreender verdadeiramente enquanto
homens e mulheres convictamente engajados nos ‘pressupostos religiosos’, nós
vemos em ti uma planta que cresceu sob os nossos pés mas que não carrega mais a
nossa essência. Houve em ti, em algum momento de teu crescimento, uma deturpação
do sentido que procuramos inocular no teu sangue e no teu pensamento. Teu
caminho, que deveria ser uno, indivisível, impossível de abandonar, bifurcou-se
– ou trifurcou-se, não sei – e escolheste a via oposta. Não posso deixar de
lamentar esse fato, mas reconheço o direito subjetivo que tu sempre detiveste
para fazer tal escolha. Todavia, também deves ter em mente que o nosso direito
de discordância também possui os seus instrumentos peculiares. Podes invocar
diversos direitos que muitos chamam ‘positivados’ – ampla defesa e
contraditório, ‘devido processo legal’, ‘juízo natural’, liberdade de expressão,
repulsa inarredável dos ‘tribunais de exceção’. Podes elencar todas essas
garantias e direitos, e ainda assim não arredará de nós a legitimidade que dita
o nosso procedimento. Sabe por quê? A legitimidade que nos respalda é
supra-positiva, não se sustenta em qualquer direito escrito ou consuetudinário
que tua mente arguta possa reclamar. O nosso poder transcende as coisas deste
mundo porque busca a sua baliza fundamental naquilo que temos de mais
misterioso e reverenciável: a religião que abraçamos. Estás devidamente
informado do nosso poder e de nossas intenções. Já não nos cabe acrescentar
mais nada. O teu processo, aqui, está terminado. O libelo, já o tens incutido
na mente e nas idéias, já não podes libertar-te dele, nem mesmo olvidar o seu
conteúdo. Não é ele delimitado lingüística ou semanticamente, não possui ele
qualquer ambigüidade que possa ser gerada pela imprecisão das palavras: o
libelo é pura sensação mística, inarredável influência que te há de guiar e
absorver-te nos menores atos. Despedimo-nos de ti legando-te ao resto de vida
que ainda terás de suportar. Rezaremos por ti, acenderemos velas de cera
amarela, longas e grandes, para orar pelo repouso de tua inquietude. Recebe o
nosso julgamento e guarda-o no íntimo. Estás condenado, é só o que nos basta
para reconciliar o nosso tronco e congregarmo-nos na antiga placidez. Vai.”
Ao desfechar sua fala, meu tio curvou
a cabeça e passou a murmurar, muito mansamente, uma oração de contrição. Todos
os familiares imitaram-no. A atmosfera lúgubre lembrava a de um velório, as
teias de aranha e a poeira vetusta aumentavam o tom de desolação e abandono que
nos envolvia a todos. Contemplei silenciosa e estupidamente toda aquela cena
singular, até cerrar os olhos e sentir dentro de mim um irremediável
descompasso entre o mundo que me cercava e a realidade que se processava em
meus universos particulares. Silente, voltei às costas ao grupo circular e caminhei
rumo à porta. O burburinho tornou-se mais discernível enquanto eu marchava
lentamente. Quando transpus o limiar, percebi que a noite já baixara totalmente
o seu véu de escuridão sobre a terra, e apenas um luar alvo, muito alvo,
fazia-me companhia naquela hora tão melancolicamente bela, tão
inexplicavelmente bela.