domingo, 10 de março de 2013

Estranhamento de medos


Uma insônia persistente roubava-me as horas escassas de descanso. Era com calado desespero que me virava no leito um tempo sem medida, refletindo com as pestanas pesadas, as tábuas rangendo sob meu corpo, mosquitos fastientos voando em espirais insidiosas sobre minha pele, zumbindo uma sinfonia de aborrecimento que invadia meus sentidos e os acordava agudamente, doloridos como se feridos por facas. Discutia, horas sobre horas, com os meus eus recônditos, entretido num monólogo pluralista repleto de considerações filosóficas, réplicas mordazes, lacunas insuperáveis que estacionavam o meu cansaço sobre as bases florescentes de uma utopia feita de segredos. Conseguia conciliar o sono somente quando a aurora ensaiava sua melodia de luz no horizonte azulado do alvorecer.
Daquele tempo, o que minhas reminiscências guardaram corresponde a cristais de emoções que se incrustaram no mosaico de minha alma e marcam sua influência nos meus passos. Era com profundo tédio que me erguia pela manhã, sonolento e indiferente. O dia era de um aborrecimento atroz, as imagens da realidade impunham-se aos meus olhos fatigados e tornava-os inexpressivos. As pessoas eram vultos confusos que eu mal distinguia dentro de minha obsessão. Com os olhos espetados nalgum ponto invisível do espaço, as pernas percorrendo um caminho persistentemente semelhante a todos os outros que já trilhara, indagava-me repetidamente sobre os mistérios que minhas cogitações não elucidavam. Via-me transportado ao pico planáltico de um pedestal particular, imune e absoluto, estático e inacessível, tentando decifrar os enigmas de um mundo físico que parecia viver na dependência estranha de um outro mundo, muito mais belo porém incompreensível. Distanciava-me das coisas e das pessoas com veemente rancor, preso numa espécie de torre quimérica, levemente reverberante, convictamente pronto a repudiar as agruras rotineiras da vida diária como meras reproduções de existências medíocres. Assim devorava as horas de luz e calor. Aguardava, expectante, a luz natural desmaiar sob o fluir do tempo, para então contemplar, com semblante impassível, sentado num pedaço desbotado de muro a noite desenrolar-se num langor de amplidão, bebendo café e deleitando-me com a doce sensação de inatividade que me dominava.
Foi numa noite dessas, quando a atmosfera resplandecia com a alegria de final de ano, que decidi abandonar os dogmas que me transformavam num escravo dissimulado. Passei a madrugada meditando num mesmo lugar, o celular vibrando insistentemente, os postes públicos incidindo o seu costumeiro facho de luz amarelenta sobre a rua e as árvores silentes. Minha casa estava tomada por curiosos familiares que me fitaram com mudo encantamento e surda raiva no momento em que entrei na sala e fitei a todos numa interrogação atônita. “Mas o que é isso? Invadiram a minha casa por quê?” Lembro minha mãe, cujas cãs acentuavam-se numa medida dolorosa para a sua vaidade, olhar-me entre lágrimas com uma expressão de repulsa, como se adivinhasse em meus olhos o que estava prestes a dizer. Volvi os olhos para um canto, percebi que algumas das minhas tias estavam ajoelhadas ante uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida, orando contritamente. A fúria dominou meus sentidos, experimentei um desejo fulminante de gritar àqueles entes ansiosos o quando me enojava a sujeição deles aos dogmas e às verdades. Depositei sobre a mesa as chaves que apertava na mão direita, e solene, sem escutar as perguntas apressadas e nem responder aos abraços apertados que estreitavam meu corpo, proferi uma mensagem que desenhou em seus rostos uma estupefação impotente.

O menino seguia o pai com a alegria transparecendo no rosto pequenino. Fazia tanto tempo que não saía com o ele sozinho, os dois entregues às cumplicidades insubstituíveis que se estabelecem entre dois amigos que se conhecem profundamente, que ele desejava tornar esse momento único, de modo que nem o tempo ou as saudades fossem capazes de apagar de suas lembranças a impressão vívida e confortadora que sentia.
Os dois passaram a tarde executando as tarefas mais diversas – lendo, jogando futebol, construindo um carro de rolimã, pescando, arrumando a casa de campo que se bagunçara com os seus esforços prazenteiros. Meio exaustos, sentaram-se na relva para observar o crepúsculo que se avizinhava da nesga do matagal que se erguia, longe e belíssimo.
“Pai”, murmurou depois de hesitar algum tempo, “o senhor acredita em Deus?”
O pai olhou-o um tanto surpreso com a intempestividade da pergunta, endireitou o corpo para que os olhos dos dois pudessem fitar-se diretamente, guardou numa caixa depositada ali perto uma pedra que estivera segurando desde que sentara na relva.
“Por que está perguntando isso?”
“Porque o senhor nunca me disse nada sobre isso. Perguntei algumas vezes à mãe, mas ela sempre desvia os olhos e faz uma cara brava, sem responder nada. Fiquei curioso...”
. O pai pensou um momento antes de responder. Seu peito inspirou profundamente e os olhos repousaram novamente sobre o sol alaranjado e dormente
“Eu não sei o que dizer sobre isso, filho. Às vezes, fico pensando sobre isso durante bastante tempo, mas nunca chego a uma conclusão. Sou tentado a acreditar firmemente na existência de um Deus benfazejo que nos governa bondosamente, mas também sinto uma forte descrença transparecer em meus pensamentos. Nunca gostei de ir à missa, obedecer àqueles ritos cheios de mofo e pó que os padres e beatas tentavam-me incutir. Li a Bíblia em algumas ocasiões, por curiosidade, e fiquei com a impressão de que a o livro sagrado não fala do mesmo Deus em todas as passagens. No antigo testamento, fiquei com a impressão de que o Deus dos hebreus era um déspota consumido pela sede de vingança e punição, exigindo de seus seguidores uma virtude maior do que aquela que os humanos efetivamente podem demonstrar. No novo testamento, Deus muda sua face a  tal ponto que, num gesto repleto de bonomia, chega a nos ofertar seu único filho para pasto de nossa fúria. Num perdão amplo e doloroso, elimina de nossos corações a culpa e o pecado pela morte Daquele que assassinamos. Não foi somente essa contradição que vislumbrei na religião, mas muitas outras, que repeti pela vida afora frente a teólogos, religiosos e outras pessoas de grande fé. Sempre fui apupado pela maioria e aplaudido por poucos. Mas, filho, não posso dizer que tive felicidade nesse caminho de quase descrença. A maioria das pessoas não perdoa o ateísmo, ou mesmo a sombra dele, e relega o homem que o manifesta às regiões abandonadas de um desprezo custosamente ocultado. Vivi muito tempo triste e cabisbaixo, desejando uma fé sólida como a daqueles que me rodeavam, sabendo, entretato, que jamais seria capaz de alcançá-la, pois meu coração foi forjado de forma diversa à do coração dos outros. Porém, superei a maioria dos dissabores e adquiri uma certa tranqüilidade íntima que, creio, deve ser muito mais saborosa que o gozo religioso.Tenho um filho, uma situação estável, uma felicidade imensa de olhar as coisas de mundo sem pressa e com profunda reverência: isso basta.”
O menino ainda não estava satisfeito. Queria uma resposta definitiva que o guiasse também, porque a perplexidade que sentia frente às discussões ásperas do mundo perceptível com o mundo utópico relatado por seus parentes resultava, em seus pensamentos, numa batalha onde a crença e a fé perdiam um espaço cada vez maior.
“Mas o senhor acredita ou não? Ser tentado a acreditar não é igual a acreditar ou não acreditar. É uma indefinição...”
O pai suspirou e tocou o ombro do menino.
“Juninho, imagine que exista uma verdade única e poderosa, oculta em algum ponto distante do universo. Imagine que ela está tão distante, e suas afirmações são tão categóricas e certas que o gênio humano jamais seja capaz de entendê-la de maneira conveniente. Imagine também que, em algum dia indefinido, os homens consigam encontrá-la e desvendá-la, submetendo-a em seguida à apreciação dos seus semelhantes. Decifraram-na em todos os seus meandros, apresentaram-na cheia de pompa, única guia nova do ser humano. Muitos se regozijam, outros se lamentam, há um alvoroço tremendo em todos os rostos. Por fim tudo se acalma, os homens e as mulheres acostumam-se ao domínio da verdade. Contudo, depois de algumas semanas, uma onda de depressão percorre as fileiras da sociedade. Intrigados, os homens que desvendaram a verdade perguntam a alguns dos atingidos pela tristeza o motivo de apresentarem semblantes tão pesados. ‘Nós, senhores’, responde um deles, ‘ não pedimos que nos trouxessem a verdade. O que nos embriagava as vidas era a suspeita, a crença, e mais que tudo, a simples e importante possibilidade. Não desejávamos a certeza, preferíamos a dúvida. O que nos resta? A verdade aí está, imutável, única, não está sujeita à discussão. Fomos arrancados da nossa condição de pensantes e criadores, tornamo-nos simplesmente contempladores da essência, do mistério, e agora estamos acorrentados à necessidade de nos submetermos. Despedimo-nos da transitoriedade, estamos agora presos ao momento presente, à direção definida, rumo a um futuro cujo horizonte estará delimitado pela certeza, sempre, sempre a certeza...’ Os homens que ofertaram a verdade aos seus semelhantes perturbaram-se, e viram nascer, aos poucos, um movimento surdo que beirava as raias da irrealidade. As pessoas que o abraçaram passaram a viver simplesmente sem comentar, perceber, querer ou fitar a verdade, como se ela não existisse ou estivesse ainda inacessível. E contudo ela permanecia ali, visível, palpável, fitando a todos na sua perenidade irremediável. Aos poucos o templo erguido ao culto da verdade foi-se esvaziando, cada vez mais raras e pobres as oferendas que se depositavam no seu altar luxuosamente ornado. O movimento tinha-se alastrado tão intensamente que já não imperava na sociedade a influência da verdade, e sim o estigma renovador da dúvida. Os homens tinham escolhido a cegueira, a surdez, a imaginação ampla e descompromissada com os liames reais - e a verdade ficou lá, encarapitada no pedestal construído para abrigá-la eternamente, empoeirada e faminta de atenção, a esperar pela idolatria dos homens que jamais se ajoelhariam novamente à sua frente.”
O pai calou-se um momento, sorriu para o menino, e levantou-se. Ergueu a caixa que continha a pedra guardada, e arrojou-a longe.
“O importante, meu filho, não é desvendar a verdade, ou como quiser chamá-la. O importante é viver sabendo que ela existe simplesmente para nos tornar melhores do que somos, sem necessidade de uma revelação ou de um apocalipse que coroe a glória de não-sei-o-quê. Se a verdade existe, prefiro que jamais seja descoberta.”

Pouco depois de ter dito tudo o que pensava à minha família, fiquei sozinho, sem receber vizinhas, por umas duas semanas. Refleti que o escândalo devia ser grande ainda nas consciências estupefatas, sorri satisfeito e dispus-me a ficar recluso em casa, lendo, ouvindo música clássica e escrevendo. Ao fim de quinze dias, uma batida na porta. Era meu tio Alberto.
“Juninho”, ele começou, depois de sentar-se, “vim porque não engoli aquilo tudo o que disseste. Gostaria que me explicasses por que quiseste adotar esse tipo de pensamento, por que repudiaste todas as tuas crenças que sempre foram as nossas, as de todos nós, por que...”
“Tio”, atalhei, “ é irrelevante perguntar acerca do porquê. O que realmente interessa é que decidi não seguir mais os ditames religiosos que vocês sempre ensinaram e incentivaram. Foi uma decisão madura, que eu já analisava há muito tempo. Não há o que discutir, há apenas o que aceitar,se desejarem fazer isso.”
“Mas”, retrucou ele, “sabes que nossa família nunca admitiu o ateísmo. Sempre fomos inimigos de todas as formas de descrença e heresia...”
“Heresia!...” interrompi, irônico. Uma lufada de vento sacudiu as persianas, uma réstia de luz iluminou rapidamente um recanto escuro da sala.
“Sim, heresia! Não há outra palavra que possa definir melhor o que estás fazendo conosco. É uma vergonha, uma tremenda idiotice, uma falta de respeito! tua mãe está a ponto de ter um ataque. Ela está tão idosa, coitada! E tu...”
“Eu estou preservando aquilo que eu acredito ser o correto e o verdadeiro. Admito que comuniquei meus pensamentos de forma rude, mas ao menos salvaguardei a minha sinceridade. Se há uma coisa com a qual não podem acusar-me, é com a insinceridade.”
“Não é honroso ser sincero quando isso implica em desqualificar um conjunto de tradições religiosas que nunca fizeram mal a ninguém.”
“Claro, claro. Aqueles que foram maltratados pela intolerância religiosa nunca reclamaram. Ou estavam mortos, ou tinham as línguas cortadas, ou eram emudecidos de outra maneira menos incômoda. Efetivamente, a reclamação deles nunca chegou a melindrar os sentimentos puros de quem só pensou, diuturnamente, no bem da humanidade.”
Tio Alberto levantou-se, enraivecido. Detestava a ironia. Fitou-me com um desprezo tangível nas pupilas diminutas. O cabelo, longo, caía-lhe sobre as maçãs do rosto, o rosto brilhava, suarento.
“Ninguém está falando dos erros humanos realizados por aqueles que detém a mensagem de Deus.”
“Sei, são apenas os ensinamentos profundos e verdadeiros, dignificantes da alma humana, que merecem ser escutados e obedecidos. Prefere então que eu ironize a doutrina religiosa? Posso fazer isso sem a menor dificuldade.”
Um riso rancoroso entortou-lhe a boca.
“Não quero que diga nada. Tudo o que sai de tua boca descrente é podre”.
“Oh, mas o que é isto? Discriminação de credo, titio? A constituição brasileira não admite, hein. E, se não me engano, deve ser pecado também – afinal, o senhor está desmerecendo um semelhante, está incorrendo na ira e na falta de caridade contra um pobre homem que não consegue conceber a graça divina nas obras portentosas da natureza. Acho bom o senhor pedir desculpas, como um bom menino, e ir-se confessar com o padre mais próximo. Há uma igreja aqui próxima, todas as manhãs eles tocam, britanicamente, o sino exatamente às seis e meia da manhã. O padre é um senhor barbudo, de olhinhos empapuçados pela gordura, a transparecer uma permanente preguiça inata, mesclada com uma paciência persistente que recebe a todos com uma condescendência lenta e calculada... creio que ele deve ser a pessoa mais indicada para sanar-lhe todos os pecados da intemperança e da fúria. Já imaginou o desastre que não seria se o Juízo Final começasse dentro de alguns minutos e o senhor se apresentasse ao Altíssimo assim, repleto de pecado e maculado por essas palavras acerbas? Apresse-se, titio, o senhor não tem muito tempo!”
Tio Alberto bufava. Olhou-me um bom tempo e depois sentou-se, os olhos cansados. Desorientado, apertava as mãos em desalento, respirava profundamente, fitava-me de soslaio. Incomodado, levantei-me e fui ao parapeito da janela. A rua, plácida, com muitas árvores agitando-se impulsionados pela aragem matinal. O rebuliço ventoso levantava uma discreta cortina de pó. Aquele quadro transmitia-me um sentimento quase lírico, uma sensação que ultrapassava as barreiras de minha sensibilidade e repercutia de um modo afônico dentro de mim.... uma tranqüilidade soberba  que contrastava com a situação incômoda que me enfadava dentro da sala.
“Tio”, murmurei, de costas para ele, “não lhe passou pela cabeça que, ao dizer tudo aquilo à nossa família, ao colocar-me numa situação em que facilmente seria criticado e desprezado, em que o resultado último poderia ser o abandono e a solidão, eu não teria pensado em todas as conseqüências com o máximo de escrúpulo? Dificilmente alguém proferiria tudo o que eu proferi se não estivesse investido de uma segurança corajosa. Tio”, girei o corpo, voltando a contemplá-lo, “eu já não queria a hipocrisia calculista de quem crê em Deus por conveniência. Eu não desejava mais o horror indigesto de quem se entrega a um credo sem a convicção da fé. Eu não queria mais aceitar a verdade que me ostentavam como a guia única da vida, não conseguia mais entregar-me à comoção de observar as coisas misteriosas e simplesmente forjar respostas paliativas, refrigérios que não assassinavam as minhas dúvidas. Era uma escolha que se me impunha, e eu a fiz, em detrimento daquela que vocês, por vias diametralmente oposta, elegeram. Esse é o resumo. Espero também que seja o epílogo”.
Tio Alberto articulou uma réplica tímida. Já não conseguia mover-se em prol de coisa alguma, um aperto na garganta constringia-o ao silêncio. Tentou ainda uma acometida:
“E achas que viver sem o consolo de Deus fará de ti uma pessoa mais feliz?”
Sorri, dessa vez com bonomia. Apiedava-me do seu cansaço, via a velhice sulcar o seu rosto e tornar-lhe encanecidos os cabelos, poucos anos antes, abundantes e negros. Percebia que aquela era uma vida condenada à decadência gradual – uma queda lenta e mortal que o paralisaria num torpor preenchido de desesperança, apenas alentado pelas preces e a crença num Deus que lhe confortaria a lamúria de viver com o corpo degradado com a promessa de eterna bem-aventurança num outro mundo, reluzente de promessas de satisfações e sorrisos. Toquei o seu ombro:
“Tio, acredito que a felicidade não seja uma dádiva gratuita ou aleatória, e sim a conquista de uma situação onde a dor é pouca ou nenhuma. A ordenação misteriosa que criou o mundo, seja ela o que for, não o fez para deixarmos de sentir a dor. A existência da dor é mais sublime que o florescimento do riso, porque a dor nos submete à reflexão, à mudança, à transformação. A eternidade da felicidade é algo tão irreal que não a desejo sob hipótese nenhuma. Quero, sim, viver com a satisfação de quem descobriu que o sofrimento e a dúvida são os legados inerentes à nossa condição de homens, e que não deseja abandoná-los sob o pretexto de uma proteção celeste ou as promessas de uma existência de prazeres. Quero viver, sobretudo, sob o signo da contemplação reflexiva, o olhar-pergunta que não indaga, a palavra que não responde,  o pensamento que não se submete a qualquer barreira. Eu não nego a existência de nada –  acredito nas possibilidades infinitas da vida e na perplexidade original e indescritível do homens frente ao mundo.  É o único império sob o qual vale a pena viver”.



Numa manhã de junho, fui acordado por um garoto pálido, que com ar espavorido batia na minha porta e aguardava que lhe permitisse a entrada apertando as mãos, certamente ansioso demais para aquietar-se. Trazia um embrulho amassado, amarelado e desagradável ao toque, que me entregou com uma pressa evidente de se desvencilhar da tarefa. Já sozinho, abri o envelope: era uma espécie de intimação materna que me vinculava à obrigação de comparecer frente à família inteira, no terceiro domingo do mês. A missiva fora assinada por todos os familiares de que me recordava, e era clara ao enunciar que ninguém ousaria convencer-me da veracidade das crenças que eu tão publicamente renegara. O encontro teria mero caráter formal, diferente do usual entre pessoas do mesmo sangue. Na mesma, exortavam-me a destruir a carta tão logo tivesse apreendido tudo quanto nela se consubstanciava, e não abdicasse de forma alguma ao comparecimento. O local do encontro era uma fazenda quase abandonada que pertencia a nossa família, localizada no perímetro rural de uma cidade periférica da metrópole. Refleti muito se deveria efetivamente comparecer à intimação – já não tínhamos dito tudo quanto pudesse importar para a situação? Por que seria necessário um novo embate, um novo confronto de perspectivas que não podiam conciliar-se? Embora tivesse escrito de forma tão surpreendente e solene que não pretendiam converter-me ao credo que adotavam, não podia deixar de duvidar dessa posição tão indulgente. Decidi-me a ir, movido mais pela curiosidade que pela necessidade de entender-me com os meus.
Embora relativamente curta, a viagem foi cansativa. O trânsito estava lento, a marginal resfolegava sob o bafo quente dos motores que tornavam o ar frio uma confusão de sons e ruídos desagradáveis. Já era final de tarde quando cheguei. O vento silvava, gélido, inquietando as mirradas copas das árvores e torvelinhando as montanhas de folhas secas que jaziam na relva. De longe, contemplei a casa de madeira ruim. O telhado estava enegrecido pelas chuvas e a pintura quase totalmente descascada. Um tom de desolação e abandono irremediável cobria como um véu a imagem da fazenda meio agreste em sua quietude.  Era um lugar insólito para empreender uma reunião familiar, mas já não me competia julgar os desvarios de uma família de fanáticos. Dispus-me a acabar logo com aquilo. Marchei até a entrada, estaquei à frente da porta e olhei ainda uma vez para as árvores melancólicas e turvas na semi-escuridão que se ia construindo no horizonte.
Entrei lentamente, sentindo no rosto o bafo de mofo que se desprendia das tábuas antigas. Embora imersa numa penumbra que tornava difícil a distinção de qualquer coisa sólida, a casa parecia ainda guardar um certo aconchego, uma ternura longínqua cuja percepção se devia mais às minhas lembranças de menino que ao apreço às coisas vetustas. Com os braços estendidos, tentando tatear alguma coisa para me orientar, cheguei ao centro da sala, desorientado.
Repentinamente, como num acordo silencioso, velas dispostas em círculos sobre as velhas mesas carcomidas de cupins começaram a acender-se, iluminando todo o âmbito empoeirado da sala. Sombras enormes desenharam-se nas paredes, rostos soturnos apareceram iluminados pela luz bruxuleante. Eram meus familiares, todos vestidos de negro e com os semblantes inquisidores. Estavam dispostos um atrás de cada vela, também em círculo, e permaneceram silenciosos por vários segundos.
“Que brincadeira é essa?”, berrei desconcertado.
“Permaneças calado até que te seja dada a permissão para falar”, disse minha mãe num tom solene. ”Estamos aqui para julgar o teu procedimento leviano e cominar-te uma pena que expie o teu crime nefasto”.
“Crime?”, indaguei atarantado, fitando todas as faces que agora pareciam de cera, dada a impassibilidade com que se tinham revestido. “Não cometi qualquer crime, a consciência não me aponta uma falha sequer nos meus atos que possa merecer essa qualificação. Que espécie de tribunal ridículo pretendem imitar? Acreditam que na minha conduta exista alguma indeterminação, algum indício de apodrecimento moral, que faça jus a uma punição? E como podem se investir de prerrogativas punitivas? E com que direito?
“Permaneças calado até que te seja dada a permissão para falar”, repetiu minha mãe. “Contudo, em consideração às tuas indagações, direi apenas que estamos investidos do poder sagrado ao qual nos filiamos no dia de nosso batismo. Tu, que renunciaste às crenças que uniram e construíram o nosso tronco familiar sob a égide da virtude e da religiosidade, não podes compreender como o direito de punir nasce tão somente das prerrogativas religiosas com as quais, agora, autorizamo-nos a composição deste tribunal. Este tribunal é legítimo porque o direito ao qual tu reclamas não se encontra nas leis ou tampouco na ordenação terrena deste mundo, e sim na ordenação divina que nos foi ditada. Nós representamos o brado de Deus, o seu poder manifesto e inquestionável, a sanha de seu braço poderoso: nossas prerrogativas são tão inquestionáveis quanto a idéia de nosso Deus”.
“Idéia mentirosa, leviana e pútrida!”, gritei. “Como um poder pode nascer tão somente de si mesmo? Como podem reivindicar para si o poder de um Deus que só se revela no mistério, na dúvida, na fumaça, e que ao mesmo tempo exige de nós uma crença inabalável, própria dos seres perfeitos, sem ignorar que somos feitos de barro, de sangue, de descrença, de indecisão? É sob essa bandeira irreal que pretendem construir a minha punição? O que diz não tem sentido, mãe. O que fazem não tem sentido!”
O júri não titubeou. Nenhum deles sequer esboçou um gesto de indecisão. Contemplei durante bastante tempo aquelas faces que sinceramente amava, e cuja dureza agora ofuscava qualquer laivo de ternura que eu pudesse demonstrar. Fitavam-me sem desviar o olhar, imersos num silêncio abominável cheio de acusações e conclusões.
“Teu pai”, proferiu meu tio num tom glacial, “também aninhou no espírito a descrença infalível. Não tens idéia de como nos custou, há alguns anos, infringir a ele o mesmo júri que ora se abate sobre ti. Ele tinha uma descrença ainda mais profunda que a tua, e no entanto entregou-se sem resistência ao nosso jugo e pereceu sob a punição que incidimos sobre a sua cabeça. Não espere misericórdia ou clemência no teu julgamento. Não esperes ouvir aqui a acusação, a defesa e o libelo: eles já existem independentemente do teu reconhecimento, já estão sendo processados no seu íntimo há bastante tempo. Convocamos tua presença aqui tão somente para que pudesses atentar na existência desse veneno que, a partir de agora, começará a penetrar a tua vida e destruí-la. Abdicaste do sentido superior a todos nós, o significado humano que nos identificava, e por isso já não mereces a existência que nós engendramos para ti. Chocaste o teu medo particular com o nosso medo íntimo, compuseste um estranhamento que nos repeliu mutuamente e tornou possível essa situação de trágica calamidade. Os nossos medos já não são os mesmos, eles já não se identificam, já não se reconhecem: são feitos de outra matéria e de outros fluidos. Quando, ao destilar as tuas heresias sobre os nosso espíritos atônitos, revelaste o teor inadmissível de teus pensamentos, já estavas condenado ao desespero que, ora, será o sentimento mais vívido em teu seio. Não te apercebeste, mas já naquele momento era possível ver o nosso julgamento pronunciando-se nas circunvoluções de tua mente e externando-se numa diminuição desesperada de tuas próprias pupilas. Sim, naquele momento, quando tuas pupilas diminuíram a ponto de não se distinguir sequer o brilho negro que deveria estar presente nelas por conta das palavras tão atrozes que exprimiste, naqueles segundos de angústia recíproca, tu sorriste apenas para dissimular um justificável desconforto – e o medo mais cru pintou-se em teus olhos...”
“Estão alucinados”, murmurei balançando a cabeça, “não se explica de nenhuma outra forma essa...”
“Não há qualquer palavra que possa explicar esta situação, meu caro”, interrompeu meu tio. “Esta conjuntura que se ergueu por nossas ações tornou-nos seres irreconciliáveis. Enquanto tu descobres em ti mesmo a impossibilidade de nos compreender verdadeiramente enquanto homens e mulheres convictamente engajados nos ‘pressupostos religiosos’, nós vemos em ti uma planta que cresceu sob os nossos pés mas que não carrega mais a nossa essência. Houve em ti, em algum momento de teu crescimento, uma deturpação do sentido que procuramos inocular no teu sangue e no teu pensamento. Teu caminho, que deveria ser uno, indivisível, impossível de abandonar, bifurcou-se – ou trifurcou-se, não sei – e escolheste a via oposta. Não posso deixar de lamentar esse fato, mas reconheço o direito subjetivo que tu sempre detiveste para fazer tal escolha. Todavia, também deves ter em mente que o nosso direito de discordância também possui os seus instrumentos peculiares. Podes invocar diversos direitos que muitos chamam ‘positivados’ – ampla defesa e contraditório, ‘devido processo legal’, ‘juízo natural’, liberdade de expressão, repulsa inarredável dos ‘tribunais de exceção’. Podes elencar todas essas garantias e direitos, e ainda assim não arredará de nós a legitimidade que dita o nosso procedimento. Sabe por quê? A legitimidade que nos respalda é supra-positiva, não se sustenta em qualquer direito escrito ou consuetudinário que tua mente arguta possa reclamar. O nosso poder transcende as coisas deste mundo porque busca a sua baliza fundamental naquilo que temos de mais misterioso e reverenciável: a religião que abraçamos. Estás devidamente informado do nosso poder e de nossas intenções. Já não nos cabe acrescentar mais nada. O teu processo, aqui, está terminado. O libelo, já o tens incutido na mente e nas idéias, já não podes libertar-te dele, nem mesmo olvidar o seu conteúdo. Não é ele delimitado lingüística ou semanticamente, não possui ele qualquer ambigüidade que possa ser gerada pela imprecisão das palavras: o libelo é pura sensação mística, inarredável influência que te há de guiar e absorver-te nos menores atos. Despedimo-nos de ti legando-te ao resto de vida que ainda terás de suportar. Rezaremos por ti, acenderemos velas de cera amarela, longas e grandes, para orar pelo repouso de tua inquietude. Recebe o nosso julgamento e guarda-o no íntimo. Estás condenado, é só o que nos basta para reconciliar o nosso tronco e congregarmo-nos na antiga placidez. Vai.”
Ao desfechar sua fala, meu tio curvou a cabeça e passou a murmurar, muito mansamente, uma oração de contrição. Todos os familiares imitaram-no. A atmosfera lúgubre lembrava a de um velório, as teias de aranha e a poeira vetusta aumentavam o tom de desolação e abandono que nos envolvia a todos. Contemplei silenciosa e estupidamente toda aquela cena singular, até cerrar os olhos e sentir dentro de mim um irremediável descompasso entre o mundo que me cercava e a realidade que se processava em meus universos particulares. Silente, voltei às costas ao grupo circular e caminhei rumo à porta. O burburinho tornou-se mais discernível enquanto eu marchava lentamente. Quando transpus o limiar, percebi que a noite já baixara totalmente o seu véu de escuridão sobre a terra, e apenas um luar alvo, muito alvo, fazia-me companhia naquela hora tão melancolicamente bela, tão inexplicavelmente bela.