domingo, 20 de outubro de 2019
domingo, 10 de março de 2013
Estranhamento de medos
Uma insônia persistente roubava-me as
horas escassas de descanso. Era com calado desespero que me virava no leito um
tempo sem medida, refletindo com as pestanas pesadas, as tábuas rangendo sob
meu corpo, mosquitos fastientos voando em espirais insidiosas sobre minha pele,
zumbindo uma sinfonia de aborrecimento que invadia meus sentidos e os acordava
agudamente, doloridos como se feridos por facas. Discutia, horas sobre horas,
com os meus eus recônditos, entretido num monólogo pluralista repleto de
considerações filosóficas, réplicas mordazes, lacunas insuperáveis que
estacionavam o meu cansaço sobre as bases florescentes de uma utopia feita de
segredos. Conseguia conciliar o sono somente quando a aurora ensaiava sua
melodia de luz no horizonte azulado do alvorecer.
Daquele tempo, o que minhas
reminiscências guardaram corresponde a cristais de emoções que se incrustaram
no mosaico de minha alma e marcam sua influência nos meus passos. Era com
profundo tédio que me erguia pela manhã, sonolento e indiferente. O dia era de
um aborrecimento atroz, as imagens da realidade impunham-se aos meus olhos
fatigados e tornava-os inexpressivos. As pessoas eram vultos confusos que eu
mal distinguia dentro de minha obsessão. Com os olhos espetados nalgum ponto
invisível do espaço, as pernas percorrendo um caminho persistentemente
semelhante a todos os outros que já trilhara, indagava-me repetidamente sobre
os mistérios que minhas cogitações não elucidavam. Via-me transportado ao pico
planáltico de um pedestal particular, imune e absoluto, estático e inacessível,
tentando decifrar os enigmas de um mundo físico que parecia viver na
dependência estranha de um outro mundo, muito mais belo porém incompreensível.
Distanciava-me das coisas e das pessoas com veemente rancor, preso numa espécie
de torre quimérica, levemente reverberante, convictamente pronto a repudiar as
agruras rotineiras da vida diária como meras reproduções de existências
medíocres. Assim devorava as horas de luz e calor. Aguardava, expectante, a luz
natural desmaiar sob o fluir do tempo, para então contemplar, com semblante
impassível, sentado num pedaço desbotado de muro a noite desenrolar-se num
langor de amplidão, bebendo café e deleitando-me com a doce sensação de
inatividade que me dominava.
Foi numa noite dessas, quando a
atmosfera resplandecia com a alegria de final de ano, que decidi abandonar os
dogmas que me transformavam num escravo dissimulado. Passei a madrugada
meditando num mesmo lugar, o celular vibrando insistentemente, os postes
públicos incidindo o seu costumeiro facho de luz amarelenta sobre a rua e as
árvores silentes. Minha casa estava tomada por curiosos familiares que me
fitaram com mudo encantamento e surda raiva no momento em que entrei na sala e
fitei a todos numa interrogação atônita. “Mas o que é isso? Invadiram a minha
casa por quê?” Lembro minha mãe, cujas cãs acentuavam-se numa medida dolorosa
para a sua vaidade, olhar-me entre lágrimas com uma expressão de repulsa, como
se adivinhasse em meus olhos o que estava prestes a dizer. Volvi os olhos para
um canto, percebi que algumas das minhas tias estavam ajoelhadas ante uma
imagem de Nossa Senhora da Aparecida, orando contritamente. A fúria dominou
meus sentidos, experimentei um desejo fulminante de gritar àqueles entes
ansiosos o quando me enojava a sujeição deles aos dogmas e às verdades. Depositei
sobre a mesa as chaves que apertava na mão direita, e solene, sem escutar as
perguntas apressadas e nem responder aos abraços apertados que estreitavam meu corpo,
proferi uma mensagem que desenhou em seus rostos uma estupefação impotente.
O
menino seguia o pai com a alegria transparecendo no rosto pequenino. Fazia tanto
tempo que não saía com o ele sozinho, os dois entregues às cumplicidades
insubstituíveis que se estabelecem entre dois amigos que se conhecem
profundamente, que ele desejava tornar esse momento único, de modo que nem o
tempo ou as saudades fossem capazes de apagar de suas lembranças a impressão
vívida e confortadora que sentia.
Os
dois passaram a tarde executando as tarefas mais diversas – lendo, jogando
futebol, construindo um carro de rolimã, pescando, arrumando a casa de campo
que se bagunçara com os seus esforços prazenteiros. Meio exaustos, sentaram-se
na relva para observar o crepúsculo que se avizinhava da nesga do matagal que
se erguia, longe e belíssimo.
“Pai”,
murmurou depois de hesitar algum tempo, “o senhor acredita em Deus?”
O
pai olhou-o um tanto surpreso com a intempestividade da pergunta, endireitou o
corpo para que os olhos dos dois pudessem fitar-se diretamente, guardou numa
caixa depositada ali perto uma pedra que estivera segurando desde que sentara
na relva.
“Por
que está perguntando isso?”
“Porque
o senhor nunca me disse nada sobre isso. Perguntei algumas vezes à mãe, mas ela
sempre desvia os olhos e faz uma cara brava, sem responder nada. Fiquei
curioso...”
.
O pai pensou um momento antes de responder. Seu peito inspirou profundamente e
os olhos repousaram novamente sobre o sol alaranjado e dormente
“Eu
não sei o que dizer sobre isso, filho. Às vezes, fico pensando sobre isso
durante bastante tempo, mas nunca chego a uma conclusão. Sou tentado a
acreditar firmemente na existência de um Deus benfazejo que nos governa
bondosamente, mas também sinto uma forte descrença transparecer em meus
pensamentos. Nunca gostei de ir à missa, obedecer àqueles ritos cheios de mofo
e pó que os padres e beatas tentavam-me incutir. Li a Bíblia em algumas
ocasiões, por curiosidade, e fiquei com a impressão de que a o livro sagrado
não fala do mesmo Deus em todas as passagens. No antigo testamento, fiquei com
a impressão de que o Deus dos hebreus era um déspota consumido pela sede de
vingança e punição, exigindo de seus seguidores uma virtude maior do que aquela
que os humanos efetivamente podem demonstrar. No novo testamento, Deus muda sua
face a tal ponto que, num gesto repleto
de bonomia, chega a nos ofertar seu único filho para pasto de nossa fúria. Num
perdão amplo e doloroso, elimina de nossos corações a culpa e o pecado pela
morte Daquele que assassinamos. Não foi somente essa contradição que vislumbrei
na religião, mas muitas outras, que repeti pela vida afora frente a teólogos,
religiosos e outras pessoas de grande fé. Sempre fui apupado pela maioria e
aplaudido por poucos. Mas, filho, não posso dizer que tive felicidade nesse
caminho de quase descrença. A maioria das pessoas não perdoa o ateísmo, ou
mesmo a sombra dele, e relega o homem que o manifesta às regiões abandonadas de
um desprezo custosamente ocultado. Vivi muito tempo triste e cabisbaixo,
desejando uma fé sólida como a daqueles que me rodeavam, sabendo, entretato,
que jamais seria capaz de alcançá-la, pois meu coração foi forjado de forma
diversa à do coração dos outros. Porém, superei a maioria dos dissabores e
adquiri uma certa tranqüilidade íntima que, creio, deve ser muito mais saborosa
que o gozo religioso.Tenho um filho, uma situação estável, uma felicidade
imensa de olhar as coisas de mundo sem pressa e com profunda reverência: isso
basta.”
O
menino ainda não estava satisfeito. Queria uma resposta definitiva que o
guiasse também, porque a perplexidade que sentia frente às discussões ásperas
do mundo perceptível com o mundo utópico relatado por seus parentes resultava,
em seus pensamentos, numa batalha onde a crença e a fé perdiam um espaço cada
vez maior.
“Mas
o senhor acredita ou não? Ser tentado a acreditar não é igual a acreditar ou
não acreditar. É uma indefinição...”
O
pai suspirou e tocou o ombro do menino.
“Juninho,
imagine que exista uma verdade única e poderosa, oculta em algum ponto distante
do universo. Imagine que ela está tão distante, e suas afirmações são tão
categóricas e certas que o gênio humano jamais seja capaz de entendê-la de
maneira conveniente. Imagine também que, em algum dia indefinido, os homens
consigam encontrá-la e desvendá-la, submetendo-a em seguida à apreciação dos
seus semelhantes. Decifraram-na em todos os seus meandros, apresentaram-na
cheia de pompa, única guia nova do ser humano. Muitos se regozijam, outros se
lamentam, há um alvoroço tremendo em todos os rostos. Por fim tudo se acalma,
os homens e as mulheres acostumam-se ao domínio da verdade. Contudo, depois de
algumas semanas, uma onda de depressão percorre as fileiras da sociedade.
Intrigados, os homens que desvendaram a verdade perguntam a alguns dos
atingidos pela tristeza o motivo de apresentarem semblantes tão pesados. ‘Nós,
senhores’, responde um deles, ‘ não pedimos que nos trouxessem a verdade. O que
nos embriagava as vidas era a suspeita, a crença, e mais que tudo, a simples e
importante possibilidade. Não desejávamos a certeza, preferíamos a dúvida. O
que nos resta? A verdade aí está, imutável, única, não está sujeita à
discussão. Fomos arrancados da nossa condição de pensantes e criadores,
tornamo-nos simplesmente contempladores da essência, do mistério, e agora
estamos acorrentados à necessidade de nos submetermos. Despedimo-nos da
transitoriedade, estamos agora presos ao momento presente, à direção definida,
rumo a um futuro cujo horizonte estará delimitado pela certeza, sempre, sempre
a certeza...’ Os homens que ofertaram a verdade aos seus semelhantes
perturbaram-se, e viram nascer, aos poucos, um movimento surdo que beirava as
raias da irrealidade. As pessoas que o abraçaram passaram a viver simplesmente
sem comentar, perceber, querer ou fitar a verdade, como se ela não existisse ou
estivesse ainda inacessível. E contudo ela permanecia ali, visível, palpável,
fitando a todos na sua perenidade irremediável. Aos poucos o templo erguido ao
culto da verdade foi-se esvaziando, cada vez mais raras e pobres as oferendas
que se depositavam no seu altar luxuosamente ornado. O movimento tinha-se
alastrado tão intensamente que já não imperava na sociedade a influência da
verdade, e sim o estigma renovador da dúvida. Os homens tinham escolhido a
cegueira, a surdez, a imaginação ampla e descompromissada com os liames reais -
e a verdade ficou lá, encarapitada no pedestal construído para abrigá-la eternamente,
empoeirada e faminta de atenção, a esperar pela idolatria dos homens que jamais
se ajoelhariam novamente à sua frente.”
O
pai calou-se um momento, sorriu para o menino, e levantou-se. Ergueu a caixa
que continha a pedra guardada, e arrojou-a longe.
“O
importante, meu filho, não é desvendar a verdade, ou como quiser chamá-la. O
importante é viver sabendo que ela existe simplesmente para nos tornar melhores
do que somos, sem necessidade de uma revelação ou de um apocalipse que coroe a
glória de não-sei-o-quê. Se a verdade existe, prefiro que jamais seja
descoberta.”
Pouco depois de ter dito tudo o que
pensava à minha família, fiquei sozinho, sem receber vizinhas, por umas duas
semanas. Refleti que o escândalo devia ser grande ainda nas consciências
estupefatas, sorri satisfeito e dispus-me a ficar recluso em casa, lendo,
ouvindo música clássica e escrevendo. Ao fim de quinze dias, uma batida na
porta. Era meu tio Alberto.
“Juninho”, ele começou, depois de
sentar-se, “vim porque não engoli aquilo tudo o que disseste. Gostaria que me
explicasses por que quiseste adotar esse tipo de pensamento, por que repudiaste
todas as tuas crenças que sempre foram as nossas, as de todos nós, por que...”
“Tio”, atalhei, “ é irrelevante
perguntar acerca do porquê. O que realmente interessa é que decidi não seguir
mais os ditames religiosos que vocês sempre ensinaram e incentivaram. Foi uma
decisão madura, que eu já analisava há muito tempo. Não há o que discutir, há
apenas o que aceitar,se desejarem fazer isso.”
“Mas”, retrucou ele, “sabes que nossa
família nunca admitiu o ateísmo. Sempre fomos inimigos de todas as formas de
descrença e heresia...”
“Heresia!...” interrompi, irônico. Uma
lufada de vento sacudiu as persianas, uma réstia de luz iluminou rapidamente um
recanto escuro da sala.
“Sim, heresia! Não há outra palavra
que possa definir melhor o que estás fazendo conosco. É uma vergonha, uma
tremenda idiotice, uma falta de respeito! tua mãe está a ponto de ter um
ataque. Ela está tão idosa, coitada! E tu...”
“Eu estou preservando aquilo que eu
acredito ser o correto e o verdadeiro. Admito que comuniquei meus pensamentos
de forma rude, mas ao menos salvaguardei a minha sinceridade. Se há uma coisa
com a qual não podem acusar-me, é com a insinceridade.”
“Não é honroso ser sincero quando isso
implica em desqualificar um conjunto de tradições religiosas que nunca fizeram
mal a ninguém.”
“Claro, claro. Aqueles que foram
maltratados pela intolerância religiosa nunca reclamaram. Ou estavam mortos, ou
tinham as línguas cortadas, ou eram emudecidos de outra maneira menos incômoda.
Efetivamente, a reclamação deles nunca chegou a melindrar os sentimentos puros
de quem só pensou, diuturnamente, no bem da humanidade.”
Tio Alberto levantou-se, enraivecido.
Detestava a ironia. Fitou-me com um desprezo tangível nas pupilas diminutas. O
cabelo, longo, caía-lhe sobre as maçãs do rosto, o rosto brilhava, suarento.
“Ninguém está falando dos erros
humanos realizados por aqueles que detém a mensagem de Deus.”
“Sei, são apenas os ensinamentos
profundos e verdadeiros, dignificantes da alma humana, que merecem ser
escutados e obedecidos. Prefere então que eu ironize a doutrina religiosa?
Posso fazer isso sem a menor dificuldade.”
Um riso rancoroso entortou-lhe a boca.
“Não quero que diga nada. Tudo o que
sai de tua boca descrente é podre”.
“Oh, mas o que é isto? Discriminação
de credo, titio? A constituição brasileira não admite, hein. E, se não me
engano, deve ser pecado também – afinal, o senhor está desmerecendo um
semelhante, está incorrendo na ira e na falta de caridade contra um pobre homem
que não consegue conceber a graça divina nas obras portentosas da natureza.
Acho bom o senhor pedir desculpas, como um bom menino, e ir-se confessar com o
padre mais próximo. Há uma igreja aqui próxima, todas as manhãs eles tocam,
britanicamente, o sino exatamente às seis e meia da manhã. O padre é um senhor
barbudo, de olhinhos empapuçados pela gordura, a transparecer uma permanente
preguiça inata, mesclada com uma paciência persistente que recebe a todos com
uma condescendência lenta e calculada... creio que ele deve ser a pessoa mais
indicada para sanar-lhe todos os pecados da intemperança e da fúria. Já
imaginou o desastre que não seria se o Juízo Final começasse dentro de alguns
minutos e o senhor se apresentasse ao Altíssimo assim, repleto de pecado e
maculado por essas palavras acerbas? Apresse-se, titio, o senhor não tem muito
tempo!”
Tio Alberto bufava. Olhou-me um bom
tempo e depois sentou-se, os olhos cansados. Desorientado, apertava as mãos em
desalento, respirava profundamente, fitava-me de soslaio. Incomodado,
levantei-me e fui ao parapeito da janela. A rua, plácida, com muitas árvores
agitando-se impulsionados pela aragem matinal. O rebuliço ventoso levantava uma
discreta cortina de pó. Aquele quadro transmitia-me um sentimento quase lírico,
uma sensação que ultrapassava as barreiras de minha sensibilidade e repercutia
de um modo afônico dentro de mim.... uma tranqüilidade soberba que contrastava com a situação incômoda que
me enfadava dentro da sala.
“Tio”, murmurei, de costas para ele,
“não lhe passou pela cabeça que, ao dizer tudo aquilo à nossa família, ao
colocar-me numa situação em que facilmente seria criticado e desprezado, em que
o resultado último poderia ser o abandono e a solidão, eu não teria pensado em
todas as conseqüências com o máximo de escrúpulo? Dificilmente alguém
proferiria tudo o que eu proferi se não estivesse investido de uma segurança
corajosa. Tio”, girei o corpo, voltando a contemplá-lo, “eu já não queria a
hipocrisia calculista de quem crê em Deus por conveniência. Eu não desejava
mais o horror indigesto de quem se entrega a um credo sem a convicção da fé. Eu
não queria mais aceitar a verdade que me ostentavam como a guia única da vida, não
conseguia mais entregar-me à comoção de observar as coisas misteriosas e
simplesmente forjar respostas paliativas, refrigérios que não assassinavam as
minhas dúvidas. Era uma escolha que se me impunha, e eu a fiz, em detrimento
daquela que vocês, por vias diametralmente oposta, elegeram. Esse é o resumo.
Espero também que seja o epílogo”.
Tio Alberto articulou uma réplica
tímida. Já não conseguia mover-se em prol de coisa alguma, um aperto na
garganta constringia-o ao silêncio. Tentou ainda uma acometida:
“E achas que viver sem o consolo de
Deus fará de ti uma pessoa mais feliz?”
Sorri, dessa vez com bonomia.
Apiedava-me do seu cansaço, via a velhice sulcar o seu rosto e tornar-lhe
encanecidos os cabelos, poucos anos antes, abundantes e negros. Percebia que
aquela era uma vida condenada à decadência gradual – uma queda lenta e mortal
que o paralisaria num torpor preenchido de desesperança, apenas alentado pelas
preces e a crença num Deus que lhe confortaria a lamúria de viver com o corpo
degradado com a promessa de eterna bem-aventurança num outro mundo, reluzente
de promessas de satisfações e sorrisos. Toquei o seu ombro:
“Tio, acredito que a felicidade não
seja uma dádiva gratuita ou aleatória, e sim a conquista de uma situação onde a
dor é pouca ou nenhuma. A ordenação misteriosa que criou o mundo, seja ela o
que for, não o fez para deixarmos de sentir a dor. A existência da dor é mais
sublime que o florescimento do riso, porque a dor nos submete à reflexão, à
mudança, à transformação. A eternidade da felicidade é algo tão irreal que não
a desejo sob hipótese nenhuma. Quero, sim, viver com a satisfação de quem
descobriu que o sofrimento e a dúvida são os legados inerentes à nossa condição
de homens, e que não deseja abandoná-los sob o pretexto de uma proteção celeste
ou as promessas de uma existência de prazeres. Quero viver, sobretudo, sob o
signo da contemplação reflexiva, o olhar-pergunta que não indaga, a palavra que
não responde, o pensamento que não se
submete a qualquer barreira. Eu não nego a existência de nada – acredito nas possibilidades infinitas da vida
e na perplexidade original e indescritível do homens frente ao mundo. É o único império sob o qual vale a pena
viver”.
Numa manhã de junho, fui acordado por
um garoto pálido, que com ar espavorido batia na minha porta e aguardava que
lhe permitisse a entrada apertando as mãos, certamente ansioso demais para
aquietar-se. Trazia um embrulho amassado, amarelado e desagradável ao toque,
que me entregou com uma pressa evidente de se desvencilhar da tarefa. Já
sozinho, abri o envelope: era uma espécie de intimação materna que me vinculava
à obrigação de comparecer frente à família inteira, no terceiro domingo do mês.
A missiva fora assinada por todos os familiares de que me recordava, e era clara
ao enunciar que ninguém ousaria convencer-me da veracidade das crenças que eu
tão publicamente renegara. O encontro teria mero caráter formal, diferente do
usual entre pessoas do mesmo sangue. Na mesma, exortavam-me a destruir a carta
tão logo tivesse apreendido tudo quanto nela se consubstanciava, e não
abdicasse de forma alguma ao comparecimento. O local do encontro era uma
fazenda quase abandonada que pertencia a nossa família, localizada no perímetro
rural de uma cidade periférica da metrópole. Refleti muito se deveria
efetivamente comparecer à intimação – já não tínhamos dito tudo quanto pudesse
importar para a situação? Por que seria necessário um novo embate, um novo
confronto de perspectivas que não podiam conciliar-se? Embora tivesse escrito de
forma tão surpreendente e solene que não pretendiam converter-me ao credo que
adotavam, não podia deixar de duvidar dessa posição tão indulgente. Decidi-me a
ir, movido mais pela curiosidade que pela necessidade de entender-me com os
meus.
Embora relativamente curta, a viagem
foi cansativa. O trânsito estava lento, a marginal resfolegava sob o bafo
quente dos motores que tornavam o ar frio uma confusão de sons e ruídos
desagradáveis. Já era final de tarde quando cheguei. O vento silvava, gélido,
inquietando as mirradas copas das árvores e torvelinhando as montanhas de
folhas secas que jaziam na relva. De longe, contemplei a casa de madeira ruim.
O telhado estava enegrecido pelas chuvas e a pintura quase totalmente
descascada. Um tom de desolação e abandono irremediável cobria como um véu a
imagem da fazenda meio agreste em sua quietude.
Era um lugar insólito para empreender uma reunião familiar, mas já não
me competia julgar os desvarios de uma família de fanáticos. Dispus-me a acabar
logo com aquilo. Marchei até a entrada, estaquei à frente da porta e olhei
ainda uma vez para as árvores melancólicas e turvas na semi-escuridão que se ia
construindo no horizonte.
Entrei lentamente, sentindo no rosto o
bafo de mofo que se desprendia das tábuas antigas. Embora imersa numa penumbra
que tornava difícil a distinção de qualquer coisa sólida, a casa parecia ainda
guardar um certo aconchego, uma ternura longínqua cuja percepção se devia mais
às minhas lembranças de menino que ao apreço às coisas vetustas. Com os braços
estendidos, tentando tatear alguma coisa para me orientar, cheguei ao centro da
sala, desorientado.
Repentinamente, como num acordo silencioso,
velas dispostas em círculos sobre as velhas mesas carcomidas de cupins
começaram a acender-se, iluminando todo o âmbito empoeirado da sala. Sombras
enormes desenharam-se nas paredes, rostos soturnos apareceram iluminados pela
luz bruxuleante. Eram meus familiares, todos vestidos de negro e com os
semblantes inquisidores. Estavam dispostos um atrás de cada vela, também em
círculo, e permaneceram silenciosos por vários segundos.
“Que brincadeira é essa?”, berrei
desconcertado.
“Permaneças calado até que te seja
dada a permissão para falar”, disse minha mãe num tom solene. ”Estamos aqui
para julgar o teu procedimento leviano e cominar-te uma pena que expie o teu
crime nefasto”.
“Crime?”, indaguei atarantado, fitando
todas as faces que agora pareciam de cera, dada a impassibilidade com que se
tinham revestido. “Não cometi qualquer crime, a consciência não me aponta uma
falha sequer nos meus atos que possa merecer essa qualificação. Que espécie de
tribunal ridículo pretendem imitar? Acreditam que na minha conduta exista
alguma indeterminação, algum indício de apodrecimento moral, que faça jus a uma
punição? E como podem se investir de prerrogativas punitivas? E com que
direito?
“Permaneças calado até que te seja
dada a permissão para falar”, repetiu minha mãe. “Contudo, em consideração às tuas
indagações, direi apenas que estamos investidos do poder sagrado ao qual nos filiamos
no dia de nosso batismo. Tu, que renunciaste às crenças que uniram e
construíram o nosso tronco familiar sob a égide da virtude e da religiosidade,
não podes compreender como o direito de punir nasce tão somente das
prerrogativas religiosas com as quais, agora, autorizamo-nos a composição deste
tribunal. Este tribunal é legítimo porque o direito ao qual tu reclamas não se
encontra nas leis ou tampouco na ordenação terrena deste mundo, e sim na
ordenação divina que nos foi ditada. Nós representamos o brado de Deus, o seu
poder manifesto e inquestionável, a sanha de seu braço poderoso: nossas
prerrogativas são tão inquestionáveis quanto a idéia de nosso Deus”.
“Idéia mentirosa, leviana e pútrida!”,
gritei. “Como um poder pode nascer tão somente de si mesmo? Como podem
reivindicar para si o poder de um Deus que só se revela no mistério, na dúvida,
na fumaça, e que ao mesmo tempo exige de nós uma crença inabalável, própria dos
seres perfeitos, sem ignorar que somos feitos de barro, de sangue, de
descrença, de indecisão? É sob essa bandeira irreal que pretendem construir a
minha punição? O que diz não tem sentido, mãe. O que fazem não tem sentido!”
O júri não titubeou. Nenhum deles
sequer esboçou um gesto de indecisão. Contemplei durante bastante tempo aquelas
faces que sinceramente amava, e cuja dureza agora ofuscava qualquer laivo de
ternura que eu pudesse demonstrar. Fitavam-me sem desviar o olhar, imersos num
silêncio abominável cheio de acusações e conclusões.
“Teu pai”, proferiu meu tio num tom
glacial, “também aninhou no espírito a descrença infalível. Não tens idéia de
como nos custou, há alguns anos, infringir a ele o mesmo júri que ora se abate
sobre ti. Ele tinha uma descrença ainda mais profunda que a tua, e no entanto
entregou-se sem resistência ao nosso jugo e pereceu sob a punição que incidimos
sobre a sua cabeça. Não espere misericórdia ou clemência no teu julgamento. Não
esperes ouvir aqui a acusação, a defesa e o libelo: eles já existem independentemente
do teu reconhecimento, já estão sendo processados no seu íntimo há bastante
tempo. Convocamos tua presença aqui tão somente para que pudesses atentar na
existência desse veneno que, a partir de agora, começará a penetrar a tua vida
e destruí-la. Abdicaste do sentido superior a todos nós, o significado humano
que nos identificava, e por isso já não mereces a existência que nós
engendramos para ti. Chocaste o teu medo particular com o nosso medo íntimo,
compuseste um estranhamento que nos repeliu mutuamente e tornou possível essa
situação de trágica calamidade. Os nossos medos já não são os mesmos, eles já
não se identificam, já não se reconhecem: são feitos de outra matéria e de
outros fluidos. Quando, ao destilar as tuas heresias sobre os nosso espíritos
atônitos, revelaste o teor inadmissível de teus pensamentos, já estavas
condenado ao desespero que, ora, será o sentimento mais vívido em teu seio. Não
te apercebeste, mas já naquele momento era possível ver o nosso julgamento
pronunciando-se nas circunvoluções de tua mente e externando-se numa diminuição
desesperada de tuas próprias pupilas. Sim, naquele momento, quando tuas pupilas
diminuíram a ponto de não se distinguir sequer o brilho negro que deveria estar
presente nelas por conta das palavras tão atrozes que exprimiste, naqueles
segundos de angústia recíproca, tu sorriste apenas para dissimular um
justificável desconforto – e o medo mais cru pintou-se em teus olhos...”
“Estão alucinados”, murmurei
balançando a cabeça, “não se explica de nenhuma outra forma essa...”
“Não há qualquer palavra que possa
explicar esta situação, meu caro”, interrompeu meu tio. “Esta conjuntura que se
ergueu por nossas ações tornou-nos seres irreconciliáveis. Enquanto tu descobres
em ti mesmo a impossibilidade de nos compreender verdadeiramente enquanto
homens e mulheres convictamente engajados nos ‘pressupostos religiosos’, nós
vemos em ti uma planta que cresceu sob os nossos pés mas que não carrega mais a
nossa essência. Houve em ti, em algum momento de teu crescimento, uma deturpação
do sentido que procuramos inocular no teu sangue e no teu pensamento. Teu
caminho, que deveria ser uno, indivisível, impossível de abandonar, bifurcou-se
– ou trifurcou-se, não sei – e escolheste a via oposta. Não posso deixar de
lamentar esse fato, mas reconheço o direito subjetivo que tu sempre detiveste
para fazer tal escolha. Todavia, também deves ter em mente que o nosso direito
de discordância também possui os seus instrumentos peculiares. Podes invocar
diversos direitos que muitos chamam ‘positivados’ – ampla defesa e
contraditório, ‘devido processo legal’, ‘juízo natural’, liberdade de expressão,
repulsa inarredável dos ‘tribunais de exceção’. Podes elencar todas essas
garantias e direitos, e ainda assim não arredará de nós a legitimidade que dita
o nosso procedimento. Sabe por quê? A legitimidade que nos respalda é
supra-positiva, não se sustenta em qualquer direito escrito ou consuetudinário
que tua mente arguta possa reclamar. O nosso poder transcende as coisas deste
mundo porque busca a sua baliza fundamental naquilo que temos de mais
misterioso e reverenciável: a religião que abraçamos. Estás devidamente
informado do nosso poder e de nossas intenções. Já não nos cabe acrescentar
mais nada. O teu processo, aqui, está terminado. O libelo, já o tens incutido
na mente e nas idéias, já não podes libertar-te dele, nem mesmo olvidar o seu
conteúdo. Não é ele delimitado lingüística ou semanticamente, não possui ele
qualquer ambigüidade que possa ser gerada pela imprecisão das palavras: o
libelo é pura sensação mística, inarredável influência que te há de guiar e
absorver-te nos menores atos. Despedimo-nos de ti legando-te ao resto de vida
que ainda terás de suportar. Rezaremos por ti, acenderemos velas de cera
amarela, longas e grandes, para orar pelo repouso de tua inquietude. Recebe o
nosso julgamento e guarda-o no íntimo. Estás condenado, é só o que nos basta
para reconciliar o nosso tronco e congregarmo-nos na antiga placidez. Vai.”
Ao desfechar sua fala, meu tio curvou
a cabeça e passou a murmurar, muito mansamente, uma oração de contrição. Todos
os familiares imitaram-no. A atmosfera lúgubre lembrava a de um velório, as
teias de aranha e a poeira vetusta aumentavam o tom de desolação e abandono que
nos envolvia a todos. Contemplei silenciosa e estupidamente toda aquela cena
singular, até cerrar os olhos e sentir dentro de mim um irremediável
descompasso entre o mundo que me cercava e a realidade que se processava em
meus universos particulares. Silente, voltei às costas ao grupo circular e caminhei
rumo à porta. O burburinho tornou-se mais discernível enquanto eu marchava
lentamente. Quando transpus o limiar, percebi que a noite já baixara totalmente
o seu véu de escuridão sobre a terra, e apenas um luar alvo, muito alvo,
fazia-me companhia naquela hora tão melancolicamente bela, tão
inexplicavelmente bela.
domingo, 22 de abril de 2012
Espelho Quebrado...
Primeiro considerou o longo caminho que se desenrolava na
forma de aléias de pedras brancas que se perdiam ao longe, desembocando numa
cadeia de montanhas cujos picos brancos resplandeciam com a luz do dia
nascente, para depois considerar a monstruosidade de seus pés descalços e
ensangüentados que mal agüentavam com o peso do corpo. Era com um sentimento de
íntimo orgulho que observava na sua pele as feridas que porejavam um sangue
fétido, e os olhos não conseguiam conter a imensa alegria ao ver a seus pés, num
trapo hediondo de sangue e horror, um cadáver de fisionomia idêntica à sua, com
a garganta aberta e os olhos opacos. Na destra ainda segurava uma faca
escarlate cujo cabo já se tornara visguento e insuportável ao tato. Ele
ajoelhou-se e examinou o corpo morto, como se investigasse a existência de
algum resquício distante de vida a tremeluzir no olhar imóvel. Ficou algum
tempo acariciando a pele lívida do outro, rindo-se sadicamente do esgar
desesperado que se desenhava naquele semblante cheio de um ódio inaudito, até
erguer-se lentamente, ainda fitando o cadáver. Quando a contemplação silenciosa
já não cabia na sua satisfação, ele permitiu-se gargalhar de uma forma malévola
que arrepiou os seus próprios sentidos. A gargalhada estendeu-se por todo o seu
sangue como um fluido de gelo que fechou sua boca abruptamente, mas o riso
ainda ecoava nos seus ouvidos quando se ergueu da cama num arranco violento,
suando, a lua alvacenta iluminando fragilmente o seu quarto. “Sonho estranho”,
disse consigo, o peito opresso. Temeu durante alguns segundos que tivesse
deixado escapar algum grito ou mesmo uma gargalhada que revelasse aos pais, que
dormiam próximos do seu quarto, que estivera sonhando, mas o medo dissipou-se
rapidamente, porque o único som que escutou foi o bater oco do seu coração.
Sentou-se na cama e ficou olhando um pedaço mais escuro
do assoalho, sem cansaço ou consciência. Desperto, contou os pisos que se
distribuíam harmonicamente, em losangos caprichosos e lisos que o surpreenderam
por não apresentarem qualquer mácula aparente. Uma limpidez brilhante cobria
aqueles pisos geometricamente recortados, e ele perguntou de si para si se
valia a pena ter uma forma definida e imutável, ser um liso losango ligado a
outros iguais a si, submetido ao pisar perpétuo de pés que sempre haveriam de
machucar-lhe a superfície, apenas pela certeza de resguardar-se da
imprevisibilidade de não possuir destino certo? Pois os losangos do piso tinham
a sua missão e essência devidamente representada pela própria função, que era a
de ornar o piso e torná-lo agradável às vistas e aos pés – nada ultrapassava ou
modificava sensivelmente essa função, e eles, se consciência tivessem, poderiam
amparar-se perpetuamente no consolo de terem seu lugar no mundo, um lugar seu
por direito, impossível de ser usurpado. Ele ficou alguns minutos refletindo
sobre essa idéia, sem pressa, os olhos agora acostumados à penumbra. Começou a
caminhar pelo quarto, sentindo uma vontade terrível de fumar, como já fizera
algumas vezes, escondido.
“Não consegue dormir?”, indagou uma voz que vinha do
umbral da porta. Ele voltou-se, observou a figura silenciosamente, mas não
respondeu. Apontou um caderno negro em cima da escrivaninha. Sobre a capa,
repousava uma caneta prateada a reverberar a luz do luar.
“Estava escrevendo, então?”, a figura adiantou-se, e a
quando a luminosidade natural bateu-lhe no rosto, foi possível distinguir o sorriso
que ornava o semblante de feições macias. Os olhos aquilinos de pupilas
alargadas denotavam um gênio tenaz que parecia suavizar-se pela bonomia inata
que resplandecia em seus gestos.
“Não é conveniente que fique aqui muito tempo, Rosana”,
respondeu-lhe, os braços cruzados. Tentou demonstrar certa irritação, mas não
conseguiu. Os músculos faciais não enrijeceram da maneira que ele desejava, e a
fisionomia continuou simplesmente pensativa.
“Somos primos, meu lindo, não há nada de mais no fato de
eu conversar um pouco com você no seu quarto”.
“Concordo, mas deve concordar que um papo entre um casal
de primos, no meio da madrugada, perto de uma cama, num quarto iluminado pela
lua... não é o quadro mais casto que se possa conceber”.
Rosana libertou uma risada argentina, que o moço temeu
por poder perfeitamente despertar os seus pais. Ela avançou para a escrivaninha,
arrebatou o caderno e o folheou, de pé. Ela vestia uma camisola que delineava
seu corpo adolescente, ao qual faltava ainda aquele apuro místico que somente o
tempo pode legar a uma mulher. Ele observou-a numa quietude absoluta,
recordando-se que há alguns meses ele tivera aquele corpo nos braços e sorvera
nele um prazer físico que o embriagou por horas.
“Acho melhor você deixar o caderno onde estava, virar as
costas e voltar para o quarto. Juro que conversamos amanhã pela manhã, logo que
me levantar. É melhor”.
Ela apenas volveu o olhar para a janela, balançou a
cabeça e bocejou.
“Não seja bobo, Carlos”.
O moço apertou os lábios, e sentou na cama. Voltou a
olhar para os losangos. “Descobri outra vantagem de ser um losango de piso: não
nutrir desejo sexual por ninguém, menos ainda pelas primas”.
Rosana aparentava ler com atenção algum trecho do
caderno. Declamou em voz alta:
Faces
voltadas para a lua
Noite
áspera fruindo a própria escuridão
Sorrisos
cálidos erguendo-se ao céu envaidecido.
E
como um rosário amoroso de luz, traduzindo uma oração,
O
reflexo da lua beija a água do rio adormecido.
Eu
não sei trovar sem cantar o infinito.
Ela ficou parada, os olhos ainda fitos no papel.
“Não entendi o verso final”.
Uma lufada de vento inquietou as cortinas. Carlos
suspirou, espreguiçou-se, olhou com tédio para o caderno aberto nas mãos da
garota, que o olhava agora com atenção.
“Nem eu mesmo sei. Ultimamente tenho escrito muita coisa
sem sentido”. Ele calou-se um pouco, sentindo uma emoção aquecendo seu sangue e
criando um bolo ligeiro na garganta. “Quando você não tem idéia definida de
coisa alguma, quando o seu mundo é composto apenas por etéreas teorias que tudo
explicam mas que não levam a qualquer conclusão prática, a literatura serve como
um derivativo ao alcance do tédio. O homem escreve sobre as páginas que se
apresentam à sua frente com a alma cansada, mas ainda aspirando a ideais que
estão muito acima deles, uma ânsia de se descobrir completo e unido ao mundo
que tenta compreender...” A sua voz tremeu um pouco, como se ele não soubesse
mais como completar o pensamento. Fixou os olhos em Rosana, ergueu a destra,
tentou esboçar um gesto que saiu tão impreciso quanto a forma das próprias
reflexões. “Eu não sei explicar”.
Foi
com ternura que Rosana achegou-se ao garoto, tomou-lhe as mãos e pousou-as
sobre as suas.
“Por
que precisa explicar? O importante não é sentir, como você me disse tantas e
tantas vezes neste mesmo quarto?”
Ele
aborreceu-se com a lembrança, levantou-se, olhou através da janela aquele
cenário tão conhecido das suas noites de insônia. Tão bom seria o mundo sem as
palavras, tão boa a vida sem os pensamentos insinuando-se no sangue, irrigando
os músculos, torrentes de dúvida e medo se estendendo aos gestos e perpetuando
a história da aflição e da dor... Alisou os cabelos que lhe irritavam os olhos,
tentando decifrar naquele silêncio repleto de grilos um segredo pelo qual
efetivamente valesse a pena morrer. Ah! Quantas noites devassara assim, o corpo
derreado na janela, estrelas coruscando num céu que se esvaía nas próprias e
infinitas profundezas, tudo indefinido, etéreo, fascinantemente inquietante...
Ah! O desejo sempre vivo de integrar-se àquele universo todo que lhe envolvia,
afastar de si o ódio enorme e profundo da vida em insano movimento, penetrar em
si mesmo e deixar de ser um indivíduo e tornar-se apenas uma coisa pensante, e
só, só, só!
Rosana
levantou-se, cingiu-se ao corpo do garoto. Puxou o rosto dele contra o dela,
contemplando-o de muito perto, transmitindo-lhe o seu hálito de menta em meio a
um respirar levemente alterado. Ele endireitou o corpo, cingiu-lhe a cintura,
esmagou-lhe os seios com a pressão de seu peito, e beijou-a com uma fúria
lasciva que estava a quilômetros de distância do desejo. Ficaram enlaçados, ela
com a cabeça apoiada nas espáduas dele, pensando em mil coisas, o coração
irrequieto, sentindo-se prestes a desfazer-se em arrepios por sentir, apertado
contra si, todo o calor daquele garoto que a intrigava e atraía – ele com a mãos
acarinhando distraidamente as costas da moça, as pálpebras derreadas,
tristemente preso ao contato doce da prima.
Subitamente
desprendeu-se daquele enleio, afastou-a rapidamente e precipitou-se na cama,
repentinamente desesperado. A garota assustou-se muito com a mudança de
atitude, recuou dois passos até encontrar o parapeito da janela, de onde, os
olhos atônitos, contemplou a face decomposta do primo.
“O
que houve?”, interpelou suavemente, uma nota de carinho vibrando na voz
cautelosa.
“Nada”,
respondeu Carlos, a face sombria. “Quero que você vá embora já... que me deixe
em paz... só isso”.
“O
que eu fiz?”, retrucou a garota, melindrada. O comportamento estranho de Carlos
a aborrecia muito.
“Nada...
só quero que vá embora”.
Carlos
deitou-se com o corpo virado para a parede, sem prestar atenção à prima, que se
retirou depois de contemplá-lo ainda por um minuto. Uma aragem suave entrou no
quarto, remexeu as cortinas, inquietou as resmas de papel dispostas em cima da
escrivaninha, despertou o caderno que, aberto, ergueu algumas páginas numa
sonolenta indagação. “Por que não consigo livrar-me desse permanente desespero?
O que me leva a tratar rudemente pessoas que não possuem nenhuma culpa?”
Apertou nas mãos a coberta, as unhas fazendo pressão contra a fazenda felpuda.
“Oh! Não fosse essa convicção de estar representando uma farsa!”
Sentou-se
na cama, agarrou o celular que deixara sob o travesseiro, e discou um número.
Ouviu o chamar ritmado e insensível repetir uma, duas, três, seis vezes, até
uma voz rouca e indolente murmurar “Alô?”.
“Gustavo?”,
pronunciou Carlos lentamente. Do outro lado da linha, o moço respondeu apenas,
com a mesma voz sonolenta: “O que você quer? Acho que não deve ter desaprendido
a ver as horas e a proceder com o mínimo de conveniência nas suas relações, não
é? Por isso, irei pedir a você que...”
“Deixe
para lá as conveniências e o horário, preciso dizer-lhe uma coisa. Eu tive um
sonho muito estranho. A impressão que ele produziu em mim é difícil de ser
explicada, e o significado dele escapa-me. Preciso contá-lo a alguém, por isso
elegi você para a tarefa de escutar-me. Ouça. Eu matava, com um talho na
garganta, uma pessoa de fisionomia idêntica à minha, e depois gargalhava, cheio
de crueldade, como se fosse um sádico. O problema não é o fato de eu ter
sonhado a morte de uma pessoa assassinada por mim, nem ter rido como um maluco
depois de tê-lo feito, mas o fato de a pessoa aniquilada ter um semblante igual
ao meu... E como estava desesperado o semblante daquela pessoa! A boca
contorcida, os olhos raivosos e perplexos, como se ainda não tivesse entendido
que estava morta, morta...”
Gustavo
pareceu escutar com atenção. O mau-humor por ter sido acordado durante a
madrugada desaparecera, o que sobrara era tão somente pasmo. Ele era um grande
amigo de Carlos. Juntos desenvolviam conversas eivadas de questionamentos e de
uma filosofia incipiente, mais teórica e etérea que prática e sistematizada.
Escutou ainda algum tempo o relato do sonho do outro, a face séria escondida no
escuro, a orelha latejando devido à pressão do celular.
“Não
ocorreu a você, Carlos”, manifestou-se ele, “ que esse tipo de sonho não é mais
que uma espécie de antevisão do nosso futuro? Digo nosso, porque comungamos de
várias concepções, teorias e filosofias que nos lançam em dúvidas sempre vívidas
e poderosas. Nós relativizamos tudo em nossas vidas, Carlos, e o fizemos cheios
de uma convicção orgulhosa...”
“Calma”,
interrompeu Carlos, a voz aparentando confusão, “ está me dizendo que esse
sonho não é mais que a demonstração de um estado psicológico doentio em nós
dois? Está me dizendo que nosso futuro é o suicídio? “
“Não
é isso”, redargüiu Gustavo. “O que digo é que nós, ao abdicarmos de nossos
dogmas religiosos, ao adotarmos uma postura de indagação permanente e
abrangente, ao colocarmos um ponto de interrogação na moral, nos costumes, no
nosso lugar no mundo, no objetivo de nossas vidas, nós fomos excessivamente
cruéis conosco. Destruímos nossos baluartes, e nos permitimos viver sob o signo
da pergunta. Rejeitamos como inverídicas as verdades que a religião nos deu no
seu pacotinho de preceitos cheios de mofo, buscamos nos livros e nos
pensamentos uma verdade pela qual pudéssemos viver, mas nessa busca nós
perdemos a base sólida que nos sustentava. Caímos, e o impacto quebrou algo
dentro de nós. Para o resto da vida, carregaremos uma fisionomia atormentada,
cujo reflexo será sempre idêntico ao de um espelho quebrado: os vários pedaços
dispostos a reverberar nossa imagem, ainda que lindamente unidos uns aos
outros, não deixarão de apresentar uma imagem fragmentada, confusa, avessa à
harmonia. Eu cheguei a essa conclusão há muito tempo, e cada vez me convenço
mais de que ela será a única certeza que me guiará doravante. Nós procuramos,
Carlos, uma verdade que fosse diferente daquela que nos foi entregue desde a
infância, uma verdade que fosse produzida por nós mesmo em nossa peregrinação
pelo pensamento e pelo sonho, mas a conclusão a que cheguei apenas me assegura
que terei sobre mim, até a morte, a inexorabilidade do sofrimento. E esse sofrimento
tem algo de diverso do sofrimento das pessoas que não indagam sobre as bases do
seu próprio ser, pois ele é mais profundo e poderoso naqueles que buscam um
sentido fora dos muros dentro dos quais nos vimos nascidos. Ninguém que se
atreva a pensar pode escapar à insígnia do desespero”.
Carlos
não objetou nada até Gustavo terminar a fala. O tom tranqüilo do outro o deixou
pensativo: ele falava de sofrimento e desespero constantes, mas a voz não traía
nenhuma emoção adequada à seriedade do assunto. Notou-lhe essa contradição.
“Você
não me entendeu bem. Meu ser, como o seu, terá sempre sobre si o peso dessa
crueldade inconsciente, dessa angústia, dessa desolação. Mas eu amo a vida, e
embora não veja nela senão uma sucessão de desgraças, há uma graça e um encanto
em seus prazeres, que reluto em deixá-la. Já leu Hamlet, não? O príncipe dinamarquês alega que as pessoas não se
matam e suportam as agruras por medo do desconhecido. Certo, muito bem, mas
isso não resolve o problema. Vivemos com medo e pelo medo. A resposta está
nessa afirmação? Se estiver, somos todos uma espécie depressiva e covarde,
submetida apenas a uma Vontade universal, como queria Schopenhauer, que se
nutre de desejos continuamente perseguidos, saciados, mortos e ressuscitados. A
resposta está também na Vontade? E por que não estará também na liberdade
impossível de se renunciar, como também a queria Sartre? Para onde olhemos,
para onde nos coloquemos a vislumbrar um sentido, esbarramos em conceitos
endeusados, em absolutos filosóficos que nos prendem tanto ou mais que a
religião ou a moral, e por fim num necessário motivo final. Nossas ações
precisam estar marcadas pela sombra teleológica. Se não está, é irracionalidade
que não se coaduna com a natureza humana. Se está, é ação condicionada a se
repetir até descortinar uma finalidade maior que nós próprios, uma ação que
ultrapassa nossa compreensão e apenas nos permite indagar novamente sobre a sua
razão suficiente. É um círculo vicioso, que os idiotas que criam sistemas de
idéias reputam como passível de ser vencido através da delimitação de um espaço
conceitual que sintetize e explique o homem. Mas nós, os artífices da
indagação, os obreiros das perguntas que rasgam entranhas e dilaceram a vida,
os pedreiros que destroem as casas sob as quais repousam e depois escondem-se
sobre os escombros, palpitantes e impotentes, nós vivemos com essa condição
irrenunciável de espelhos quebrados lutando para esquecer a própria imagem
partida, fitando o mundo com os olhos fechados, porque ele também não é mais
que um espelho de dimensões imensuráveis partido em pedaços grandes o
suficiente para ocultar sua face fragmentada”.
O
vento ainda batia nas cortinas, as páginas do caderno de Carlos erguiam-se de
quando em quando, revelando algumas linhas impossíveis de se distinguir na
penumbra.
“Se
eu disser que já havia pensado nisso...”
“Você
já teve todos esses pensamentos”, interrompeu Gustavo. “Não só os teve, como
ainda os acalenta dentro de si, e certamente só faltou externá-los. Eu já os
havia desenvolvido, e aguardava apenas para dizê-los. Mas não se preocupe tanto.
A sua prima está aí, não está?”
Carlos
desligou, abrupto. Ergueu-se, foi até o banheiro, lavou o rosto. Examinou, pormenorizadamente,
o rosto que se refletia na superfície lisa e perfeita do espelho. Depois
enveredou pelo corredor escuro, cujos quadros, pendentes das paredes, esboçavam
formas diáfanas. Estacionou uns instantes em frente ao quarto de hóspedes,
refletindo. Foi com um leve rangido, que soou como um gemido das dobradiças
ásperas, que a porta abriu-se cautelosamente, para depois ser fechada
cuidadosamente, como para proteger um segredo.
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
O mesmo tédio dos holofotes silenciosos...
Amigo que me lês (se é que alguém adentra neste espaço ermo, hermético cubículo de palavras abandonadas que guardam sentimentos acres em suas linhas escassas), deves ser uma pessoa entediada. Outra conclusão não posso haurir da tua atitude - afinal, quem se meteria a analisar os escritos de um jovem enfadado senão um alguém capaz de compreender, ainda que minimamente, a carga de galante desamparo que viça na face deste autor? De certa forma, amigo, ambos estamos mal apoitados num mundo de pensamentos hesitantes e desencontrados. Entrevejo certo ressentimento ancestral nesses olhos que percorrem estas linhas - ah, a ânsia de defrontar-se com próprio eu no rosto remoto de uma outra pessoa, a rutilância esfumaçada que permeia a escuridão da alma, a perplexidade. Enrolamo-nos nessa amarga teia de sonhos, desenganos, muxoxos - emergimos de um pântano aparentemente indevassável e nos defrontamos nesta hora de mistério, "vis à vis", alheios a nós mesmos, a essência humana primária perdida nalgum recanto inconcebível. Que sobra de nós? De ti, nada consigo extrair. No ponto em que repouso, sentado deleitosamente numa cadeira almofadada, sem espaldar e sem desejos, só me acodem as forças necessárias para abstrair-me da minha própria humanidade o suficiente para que minha alma se recoste à sombra de alguma esperança muito antiga, muito lisonjeira e irremediavelmente indistinta. E tu? O que sentes enquanto tentas decifrar com fidedignidade esta ordália tautológica? Algum eco de sensações olvidadas assoma no pórtico de sua lembrança? Ou um nó inarredável prende tua garganta a algum sentimento que deve ser repreendido, compactado, escondido, aprisionado? A mim, esse circunlóquio se afigura como uma bela alternativa para sofrear estes ímpetos de arrojar-me numa rotina de autômato, sem memórias ou preocupações, ou precisamente com estas. A alma é dúbia: justamente quando parece se afogar numa placidez que só deve ser praticada nas paragens do Éden, uma cerração indefinível estaciona sobre a limpidez do céu anilado, corporifica-se numa neblina que paulatinamente recrudesce até constituir-se numa hera que escala os montes escarpados da alma e a domina por inteiro. Esse processo tem vários nomes pouco lisonjeiros: escuso-me de enunciá-los. Tu, que agora fitas o horizonte estreito da tua sala, do teu quarto, da tua realidade endurecida, te pões a refletir acerca das minhas considerações, enxugando um suor imaginário e edificando, com medido cansaço, as objeções pertinentes - objeções que teimam em permanecer no terreno utópico de onde nascem usualmente todas as inspirações. Nada te acode, tudo te escapa das mãos espalmadas: chapinhas no lodo do pensamentar, derrapas na fria ladeira do abandono intelectivo. É neste ponto que deixo-te só, a fruir com rancor moderado a letargia de uma tarde de quinta-feira que se vai encaminhando para o crepúsculo, malgrado a melancolia curvilínea que agora se prende às tuas pupilas.
terça-feira, 5 de julho de 2011
E a noite de frio e vento. Lá fora...
Arre, que o torpor dos séculos humanos, carregado com o ranço dos tédios mais denodados, e repassado às gerações supervenientes, está importunando novamente meus sentimentos. É a mesma coisa que se repete com litúrgica pontualidade, com irritante intermitência: primeiro me afogo em uma rotina hirta e inflexível, atento aos meus deveres, comprometido com as obrigações que as pessoas vão empurrando para o meu lado com desfaçatez; depois vou gradativamente perdendo o interesse nas coisas que antes atraíam minha atenção, deixo de perceber os pequenos detalhes que são capazes de infundir algum interesse a uma existência; por fim, depois de superar todas as agruras de um humor suspeito, faço questão de arrojar para longe toda a carga de responsabilidades e deleites que constituíram a nata dos meus dias pretéritos para então embrutecer-me nessa fastidiosa inamovibilidade, que irrita meu senso produtivo e faz-me perder todo o orgulho. É sentimento? É loucura? É indecisão? É apenas o gesto grave de quem já não encontra sentido nas coisas senão no momento em que artificialmente cria esse significado instável, cego e impertinente?
Escrevo isso e entao fito as paredes do meu quarto, um local seguro, caloroso, afável a minha intuitiva solidão. Janela, abajur, celular abandonado na cama, um navio em miniatura esculpido na madeira, um guarda-roupas, um grande espaço vazio no qual pretendo colocar uma escrivaninha, e eu, o objeto menos relevante nessa amálgama de insensibilidade. Desejaria escrever como Fernando Pessoa, oh, não conheci quem tivesse levado porrada, o dono da tabacaria sorrindo, o binômio de Newton arredando a beleza da Vênus de Milo, Deus meu, que digo eu? Tresvariando. Não: é ainda a manifestação do tédio, este galante e petulante e desconcertante e ainda assim fleumático tédio. Contudo, que é o tédio?, pergunta-me o filósofo que habita em mim. Para o inferno a filosofia, o niilismo, o ceticismo, o platonismo, o socialismo, o kantismo, todos esses arcabouços encarquilhados e cegos. Para o inferno, para a puta que os pariu - quem era o autor que dizia que o palavrão tem efeito catártico? Rubem Fonseca, creio eu. Intestino grosso. Sei.
Que fazer, "mon cher ami"? É uma noite de frio e vento. Lá fora... Poderia lavrar uma metáfora com isso, engendrar uma história, quebrar essa monotonia de sangue e gelo que me atormenta. Atormenta? Às vezes desconfio que todo esse descompasso, todo esse propalado desarranjo em relação ao mundo e às coisas seja apenas uma desculpa para desimpedir minha verborragia, para externar uma dor que não sinto, para asseverar sobre concepções que não acredito, divisar cenas que não vejo. O poeta é um fingidor que finge tão completamente que chega a acreditar que é dor a dor que deveras - Fernando Pessoa e seus apotegmas. Nascer de novo seria solução? Ressuscitar para uma nova realidade, na visão dostoievskiana - um caminho plausível.
O fato é que estou farto de semi-deuses.
E é uma noite de frio e vento. Lá fora... Lá fora?
Escrevo isso e entao fito as paredes do meu quarto, um local seguro, caloroso, afável a minha intuitiva solidão. Janela, abajur, celular abandonado na cama, um navio em miniatura esculpido na madeira, um guarda-roupas, um grande espaço vazio no qual pretendo colocar uma escrivaninha, e eu, o objeto menos relevante nessa amálgama de insensibilidade. Desejaria escrever como Fernando Pessoa, oh, não conheci quem tivesse levado porrada, o dono da tabacaria sorrindo, o binômio de Newton arredando a beleza da Vênus de Milo, Deus meu, que digo eu? Tresvariando. Não: é ainda a manifestação do tédio, este galante e petulante e desconcertante e ainda assim fleumático tédio. Contudo, que é o tédio?, pergunta-me o filósofo que habita em mim. Para o inferno a filosofia, o niilismo, o ceticismo, o platonismo, o socialismo, o kantismo, todos esses arcabouços encarquilhados e cegos. Para o inferno, para a puta que os pariu - quem era o autor que dizia que o palavrão tem efeito catártico? Rubem Fonseca, creio eu. Intestino grosso. Sei.
Que fazer, "mon cher ami"? É uma noite de frio e vento. Lá fora... Poderia lavrar uma metáfora com isso, engendrar uma história, quebrar essa monotonia de sangue e gelo que me atormenta. Atormenta? Às vezes desconfio que todo esse descompasso, todo esse propalado desarranjo em relação ao mundo e às coisas seja apenas uma desculpa para desimpedir minha verborragia, para externar uma dor que não sinto, para asseverar sobre concepções que não acredito, divisar cenas que não vejo. O poeta é um fingidor que finge tão completamente que chega a acreditar que é dor a dor que deveras - Fernando Pessoa e seus apotegmas. Nascer de novo seria solução? Ressuscitar para uma nova realidade, na visão dostoievskiana - um caminho plausível.
O fato é que estou farto de semi-deuses.
E é uma noite de frio e vento. Lá fora... Lá fora?
domingo, 24 de abril de 2011
Uma mente vadia...
Não costumo escrever sobre mim neste espaço. Na verdade, há bastante tempo que já não escrevo nada nesta nesga de mundo virtual que já congregou os meus sonhos e preencheu-me de esperanças a vaga mente de criança em rebeldia... A faculdade que abracei não deve ter me auxiliado neste particular. O curso de Direito, em que pese a propalada intenção de produzir profissionais humanistas, na proposta vetusta que secundou o decreto de imperial que criou no país o curso de Ciências Jurídicas, tem demonstrado - ao menos em minha tênue cosmovisão - acalentar o ideal de produzir seres capazes de decodificar as leis e os pensamentos humanos em teoremos linguísticos com conteúdo lógico, quase matemático. Há, obviamente, disciplinas que não se coadunam com essa rigidez, e seria perda de tempo enumerá-las. Falo de essência, de feeling, de qualquer coisa que transcenda a puta hemorragia do mundo cotidiano e investigue com mais nitidez as águas turvas da consciência humana...
Desculpe. Empolguei-me. É ainda resquício de uma existência entregue aos desvarios do sonho. Despi-me disso há algum tempo - não totalmente, é certo. Ainda não me tornei um misantropo, nem aspiro à tranquilidade que, dizem, somente um ermitão empedernido pode fruir em sua cascata de emoções primevas. Quando mais jovem - tenho vinte anos incompletos, no momento - acreditava numa série de coisas que hoje me fazem sorrir. O sarcasmo, que nos meus tempos de pré-adolescência era apenas uma existência parasita e inofensiva, parece invadir-me cada recanto da alma. Há resistência, certamente. Amo apaixonadamente uma princesa de dezessete anos de idade, de olhos verdes, boca magnética e ternura inesgotável. Mas uma boa parcela da alma já foi tomada por um sentimento indefinido, mescla de tédio, descrença, quietude, tranquilidade e sofrimento.
Na verdade, enfarei-me do tempo. Quando quedo silente, cheio de uma reverência ancestral pelas coisas mundanas que são maiores que minha compreensão, percebo que a poeira temporal mancha cada recanto de pensamento que eu possa engendrar, mesmo nos meus paraísos mais íntimos, e então nada mais interessa, tudo se sedimenta num tédio sem remédio, e ao final abandono qualquer quimera. A minha forma peculiar de observar o mundo, a calma com que procuro traduzir minhas impressões e conduzir a marcha de minha existência, não obstante os arroubos que eventualmente se me irrompem, e principalmente a paixão por uma rotina obediente, sem grandes sobressaltos nem emoções, desenvolvida num ritmo homogêneo, é sinal de uma resistência obstinada, uma indignação surda, contra as molas do tempo. Costumo reclamar de forma veemente contra a sua corrida insana, contra esse jeito linear que enseja a perda das melhores horas, trasvestidas em céleres sessenta minutos que mal conseguem abarcar as necessidades rotineiras. As pessoas que me escutam riem, dizem que é normal uma tal situação, que o tempo precisa exercer com bastante fidelidade o seu ofício. Discordo: o tempo tem acelerado a sua atuação, penetrado em domínios em que lhe não era facultada a entrada, e tem tomado de assalto as vidas.
Desculpe. Empolguei-me. É ainda resquício de uma existência entregue aos desvarios do sonho. Despi-me disso há algum tempo - não totalmente, é certo. Ainda não me tornei um misantropo, nem aspiro à tranquilidade que, dizem, somente um ermitão empedernido pode fruir em sua cascata de emoções primevas. Quando mais jovem - tenho vinte anos incompletos, no momento - acreditava numa série de coisas que hoje me fazem sorrir. O sarcasmo, que nos meus tempos de pré-adolescência era apenas uma existência parasita e inofensiva, parece invadir-me cada recanto da alma. Há resistência, certamente. Amo apaixonadamente uma princesa de dezessete anos de idade, de olhos verdes, boca magnética e ternura inesgotável. Mas uma boa parcela da alma já foi tomada por um sentimento indefinido, mescla de tédio, descrença, quietude, tranquilidade e sofrimento.
Na verdade, enfarei-me do tempo. Quando quedo silente, cheio de uma reverência ancestral pelas coisas mundanas que são maiores que minha compreensão, percebo que a poeira temporal mancha cada recanto de pensamento que eu possa engendrar, mesmo nos meus paraísos mais íntimos, e então nada mais interessa, tudo se sedimenta num tédio sem remédio, e ao final abandono qualquer quimera. A minha forma peculiar de observar o mundo, a calma com que procuro traduzir minhas impressões e conduzir a marcha de minha existência, não obstante os arroubos que eventualmente se me irrompem, e principalmente a paixão por uma rotina obediente, sem grandes sobressaltos nem emoções, desenvolvida num ritmo homogêneo, é sinal de uma resistência obstinada, uma indignação surda, contra as molas do tempo. Costumo reclamar de forma veemente contra a sua corrida insana, contra esse jeito linear que enseja a perda das melhores horas, trasvestidas em céleres sessenta minutos que mal conseguem abarcar as necessidades rotineiras. As pessoas que me escutam riem, dizem que é normal uma tal situação, que o tempo precisa exercer com bastante fidelidade o seu ofício. Discordo: o tempo tem acelerado a sua atuação, penetrado em domínios em que lhe não era facultada a entrada, e tem tomado de assalto as vidas.
É domingo. A noite já começa a tornar-se mais sólida e perceptível no céu desmaiado. Novamente, consegui escrever apenas o suficiente para deixar impressa uma algaravia de impressões descontextualizadas que mal merecem uma atenção mais cuidadosa. O jeito, pelo visto, é recolher-me ao meu silêncio repleto de palavras arrevesadas, de frases engulhadas em estômagos hipotéticos, de hesitações e imprecisões, e persuadir-me, de uma vez por todas, que não há literatura que baste para conjurar o desespero tão inocente de existir.
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