domingo, 10 de março de 2013

Estranhamento de medos


Uma insônia persistente roubava-me as horas escassas de descanso. Era com calado desespero que me virava no leito um tempo sem medida, refletindo com as pestanas pesadas, as tábuas rangendo sob meu corpo, mosquitos fastientos voando em espirais insidiosas sobre minha pele, zumbindo uma sinfonia de aborrecimento que invadia meus sentidos e os acordava agudamente, doloridos como se feridos por facas. Discutia, horas sobre horas, com os meus eus recônditos, entretido num monólogo pluralista repleto de considerações filosóficas, réplicas mordazes, lacunas insuperáveis que estacionavam o meu cansaço sobre as bases florescentes de uma utopia feita de segredos. Conseguia conciliar o sono somente quando a aurora ensaiava sua melodia de luz no horizonte azulado do alvorecer.
Daquele tempo, o que minhas reminiscências guardaram corresponde a cristais de emoções que se incrustaram no mosaico de minha alma e marcam sua influência nos meus passos. Era com profundo tédio que me erguia pela manhã, sonolento e indiferente. O dia era de um aborrecimento atroz, as imagens da realidade impunham-se aos meus olhos fatigados e tornava-os inexpressivos. As pessoas eram vultos confusos que eu mal distinguia dentro de minha obsessão. Com os olhos espetados nalgum ponto invisível do espaço, as pernas percorrendo um caminho persistentemente semelhante a todos os outros que já trilhara, indagava-me repetidamente sobre os mistérios que minhas cogitações não elucidavam. Via-me transportado ao pico planáltico de um pedestal particular, imune e absoluto, estático e inacessível, tentando decifrar os enigmas de um mundo físico que parecia viver na dependência estranha de um outro mundo, muito mais belo porém incompreensível. Distanciava-me das coisas e das pessoas com veemente rancor, preso numa espécie de torre quimérica, levemente reverberante, convictamente pronto a repudiar as agruras rotineiras da vida diária como meras reproduções de existências medíocres. Assim devorava as horas de luz e calor. Aguardava, expectante, a luz natural desmaiar sob o fluir do tempo, para então contemplar, com semblante impassível, sentado num pedaço desbotado de muro a noite desenrolar-se num langor de amplidão, bebendo café e deleitando-me com a doce sensação de inatividade que me dominava.
Foi numa noite dessas, quando a atmosfera resplandecia com a alegria de final de ano, que decidi abandonar os dogmas que me transformavam num escravo dissimulado. Passei a madrugada meditando num mesmo lugar, o celular vibrando insistentemente, os postes públicos incidindo o seu costumeiro facho de luz amarelenta sobre a rua e as árvores silentes. Minha casa estava tomada por curiosos familiares que me fitaram com mudo encantamento e surda raiva no momento em que entrei na sala e fitei a todos numa interrogação atônita. “Mas o que é isso? Invadiram a minha casa por quê?” Lembro minha mãe, cujas cãs acentuavam-se numa medida dolorosa para a sua vaidade, olhar-me entre lágrimas com uma expressão de repulsa, como se adivinhasse em meus olhos o que estava prestes a dizer. Volvi os olhos para um canto, percebi que algumas das minhas tias estavam ajoelhadas ante uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida, orando contritamente. A fúria dominou meus sentidos, experimentei um desejo fulminante de gritar àqueles entes ansiosos o quando me enojava a sujeição deles aos dogmas e às verdades. Depositei sobre a mesa as chaves que apertava na mão direita, e solene, sem escutar as perguntas apressadas e nem responder aos abraços apertados que estreitavam meu corpo, proferi uma mensagem que desenhou em seus rostos uma estupefação impotente.

O menino seguia o pai com a alegria transparecendo no rosto pequenino. Fazia tanto tempo que não saía com o ele sozinho, os dois entregues às cumplicidades insubstituíveis que se estabelecem entre dois amigos que se conhecem profundamente, que ele desejava tornar esse momento único, de modo que nem o tempo ou as saudades fossem capazes de apagar de suas lembranças a impressão vívida e confortadora que sentia.
Os dois passaram a tarde executando as tarefas mais diversas – lendo, jogando futebol, construindo um carro de rolimã, pescando, arrumando a casa de campo que se bagunçara com os seus esforços prazenteiros. Meio exaustos, sentaram-se na relva para observar o crepúsculo que se avizinhava da nesga do matagal que se erguia, longe e belíssimo.
“Pai”, murmurou depois de hesitar algum tempo, “o senhor acredita em Deus?”
O pai olhou-o um tanto surpreso com a intempestividade da pergunta, endireitou o corpo para que os olhos dos dois pudessem fitar-se diretamente, guardou numa caixa depositada ali perto uma pedra que estivera segurando desde que sentara na relva.
“Por que está perguntando isso?”
“Porque o senhor nunca me disse nada sobre isso. Perguntei algumas vezes à mãe, mas ela sempre desvia os olhos e faz uma cara brava, sem responder nada. Fiquei curioso...”
. O pai pensou um momento antes de responder. Seu peito inspirou profundamente e os olhos repousaram novamente sobre o sol alaranjado e dormente
“Eu não sei o que dizer sobre isso, filho. Às vezes, fico pensando sobre isso durante bastante tempo, mas nunca chego a uma conclusão. Sou tentado a acreditar firmemente na existência de um Deus benfazejo que nos governa bondosamente, mas também sinto uma forte descrença transparecer em meus pensamentos. Nunca gostei de ir à missa, obedecer àqueles ritos cheios de mofo e pó que os padres e beatas tentavam-me incutir. Li a Bíblia em algumas ocasiões, por curiosidade, e fiquei com a impressão de que a o livro sagrado não fala do mesmo Deus em todas as passagens. No antigo testamento, fiquei com a impressão de que o Deus dos hebreus era um déspota consumido pela sede de vingança e punição, exigindo de seus seguidores uma virtude maior do que aquela que os humanos efetivamente podem demonstrar. No novo testamento, Deus muda sua face a  tal ponto que, num gesto repleto de bonomia, chega a nos ofertar seu único filho para pasto de nossa fúria. Num perdão amplo e doloroso, elimina de nossos corações a culpa e o pecado pela morte Daquele que assassinamos. Não foi somente essa contradição que vislumbrei na religião, mas muitas outras, que repeti pela vida afora frente a teólogos, religiosos e outras pessoas de grande fé. Sempre fui apupado pela maioria e aplaudido por poucos. Mas, filho, não posso dizer que tive felicidade nesse caminho de quase descrença. A maioria das pessoas não perdoa o ateísmo, ou mesmo a sombra dele, e relega o homem que o manifesta às regiões abandonadas de um desprezo custosamente ocultado. Vivi muito tempo triste e cabisbaixo, desejando uma fé sólida como a daqueles que me rodeavam, sabendo, entretato, que jamais seria capaz de alcançá-la, pois meu coração foi forjado de forma diversa à do coração dos outros. Porém, superei a maioria dos dissabores e adquiri uma certa tranqüilidade íntima que, creio, deve ser muito mais saborosa que o gozo religioso.Tenho um filho, uma situação estável, uma felicidade imensa de olhar as coisas de mundo sem pressa e com profunda reverência: isso basta.”
O menino ainda não estava satisfeito. Queria uma resposta definitiva que o guiasse também, porque a perplexidade que sentia frente às discussões ásperas do mundo perceptível com o mundo utópico relatado por seus parentes resultava, em seus pensamentos, numa batalha onde a crença e a fé perdiam um espaço cada vez maior.
“Mas o senhor acredita ou não? Ser tentado a acreditar não é igual a acreditar ou não acreditar. É uma indefinição...”
O pai suspirou e tocou o ombro do menino.
“Juninho, imagine que exista uma verdade única e poderosa, oculta em algum ponto distante do universo. Imagine que ela está tão distante, e suas afirmações são tão categóricas e certas que o gênio humano jamais seja capaz de entendê-la de maneira conveniente. Imagine também que, em algum dia indefinido, os homens consigam encontrá-la e desvendá-la, submetendo-a em seguida à apreciação dos seus semelhantes. Decifraram-na em todos os seus meandros, apresentaram-na cheia de pompa, única guia nova do ser humano. Muitos se regozijam, outros se lamentam, há um alvoroço tremendo em todos os rostos. Por fim tudo se acalma, os homens e as mulheres acostumam-se ao domínio da verdade. Contudo, depois de algumas semanas, uma onda de depressão percorre as fileiras da sociedade. Intrigados, os homens que desvendaram a verdade perguntam a alguns dos atingidos pela tristeza o motivo de apresentarem semblantes tão pesados. ‘Nós, senhores’, responde um deles, ‘ não pedimos que nos trouxessem a verdade. O que nos embriagava as vidas era a suspeita, a crença, e mais que tudo, a simples e importante possibilidade. Não desejávamos a certeza, preferíamos a dúvida. O que nos resta? A verdade aí está, imutável, única, não está sujeita à discussão. Fomos arrancados da nossa condição de pensantes e criadores, tornamo-nos simplesmente contempladores da essência, do mistério, e agora estamos acorrentados à necessidade de nos submetermos. Despedimo-nos da transitoriedade, estamos agora presos ao momento presente, à direção definida, rumo a um futuro cujo horizonte estará delimitado pela certeza, sempre, sempre a certeza...’ Os homens que ofertaram a verdade aos seus semelhantes perturbaram-se, e viram nascer, aos poucos, um movimento surdo que beirava as raias da irrealidade. As pessoas que o abraçaram passaram a viver simplesmente sem comentar, perceber, querer ou fitar a verdade, como se ela não existisse ou estivesse ainda inacessível. E contudo ela permanecia ali, visível, palpável, fitando a todos na sua perenidade irremediável. Aos poucos o templo erguido ao culto da verdade foi-se esvaziando, cada vez mais raras e pobres as oferendas que se depositavam no seu altar luxuosamente ornado. O movimento tinha-se alastrado tão intensamente que já não imperava na sociedade a influência da verdade, e sim o estigma renovador da dúvida. Os homens tinham escolhido a cegueira, a surdez, a imaginação ampla e descompromissada com os liames reais - e a verdade ficou lá, encarapitada no pedestal construído para abrigá-la eternamente, empoeirada e faminta de atenção, a esperar pela idolatria dos homens que jamais se ajoelhariam novamente à sua frente.”
O pai calou-se um momento, sorriu para o menino, e levantou-se. Ergueu a caixa que continha a pedra guardada, e arrojou-a longe.
“O importante, meu filho, não é desvendar a verdade, ou como quiser chamá-la. O importante é viver sabendo que ela existe simplesmente para nos tornar melhores do que somos, sem necessidade de uma revelação ou de um apocalipse que coroe a glória de não-sei-o-quê. Se a verdade existe, prefiro que jamais seja descoberta.”

Pouco depois de ter dito tudo o que pensava à minha família, fiquei sozinho, sem receber vizinhas, por umas duas semanas. Refleti que o escândalo devia ser grande ainda nas consciências estupefatas, sorri satisfeito e dispus-me a ficar recluso em casa, lendo, ouvindo música clássica e escrevendo. Ao fim de quinze dias, uma batida na porta. Era meu tio Alberto.
“Juninho”, ele começou, depois de sentar-se, “vim porque não engoli aquilo tudo o que disseste. Gostaria que me explicasses por que quiseste adotar esse tipo de pensamento, por que repudiaste todas as tuas crenças que sempre foram as nossas, as de todos nós, por que...”
“Tio”, atalhei, “ é irrelevante perguntar acerca do porquê. O que realmente interessa é que decidi não seguir mais os ditames religiosos que vocês sempre ensinaram e incentivaram. Foi uma decisão madura, que eu já analisava há muito tempo. Não há o que discutir, há apenas o que aceitar,se desejarem fazer isso.”
“Mas”, retrucou ele, “sabes que nossa família nunca admitiu o ateísmo. Sempre fomos inimigos de todas as formas de descrença e heresia...”
“Heresia!...” interrompi, irônico. Uma lufada de vento sacudiu as persianas, uma réstia de luz iluminou rapidamente um recanto escuro da sala.
“Sim, heresia! Não há outra palavra que possa definir melhor o que estás fazendo conosco. É uma vergonha, uma tremenda idiotice, uma falta de respeito! tua mãe está a ponto de ter um ataque. Ela está tão idosa, coitada! E tu...”
“Eu estou preservando aquilo que eu acredito ser o correto e o verdadeiro. Admito que comuniquei meus pensamentos de forma rude, mas ao menos salvaguardei a minha sinceridade. Se há uma coisa com a qual não podem acusar-me, é com a insinceridade.”
“Não é honroso ser sincero quando isso implica em desqualificar um conjunto de tradições religiosas que nunca fizeram mal a ninguém.”
“Claro, claro. Aqueles que foram maltratados pela intolerância religiosa nunca reclamaram. Ou estavam mortos, ou tinham as línguas cortadas, ou eram emudecidos de outra maneira menos incômoda. Efetivamente, a reclamação deles nunca chegou a melindrar os sentimentos puros de quem só pensou, diuturnamente, no bem da humanidade.”
Tio Alberto levantou-se, enraivecido. Detestava a ironia. Fitou-me com um desprezo tangível nas pupilas diminutas. O cabelo, longo, caía-lhe sobre as maçãs do rosto, o rosto brilhava, suarento.
“Ninguém está falando dos erros humanos realizados por aqueles que detém a mensagem de Deus.”
“Sei, são apenas os ensinamentos profundos e verdadeiros, dignificantes da alma humana, que merecem ser escutados e obedecidos. Prefere então que eu ironize a doutrina religiosa? Posso fazer isso sem a menor dificuldade.”
Um riso rancoroso entortou-lhe a boca.
“Não quero que diga nada. Tudo o que sai de tua boca descrente é podre”.
“Oh, mas o que é isto? Discriminação de credo, titio? A constituição brasileira não admite, hein. E, se não me engano, deve ser pecado também – afinal, o senhor está desmerecendo um semelhante, está incorrendo na ira e na falta de caridade contra um pobre homem que não consegue conceber a graça divina nas obras portentosas da natureza. Acho bom o senhor pedir desculpas, como um bom menino, e ir-se confessar com o padre mais próximo. Há uma igreja aqui próxima, todas as manhãs eles tocam, britanicamente, o sino exatamente às seis e meia da manhã. O padre é um senhor barbudo, de olhinhos empapuçados pela gordura, a transparecer uma permanente preguiça inata, mesclada com uma paciência persistente que recebe a todos com uma condescendência lenta e calculada... creio que ele deve ser a pessoa mais indicada para sanar-lhe todos os pecados da intemperança e da fúria. Já imaginou o desastre que não seria se o Juízo Final começasse dentro de alguns minutos e o senhor se apresentasse ao Altíssimo assim, repleto de pecado e maculado por essas palavras acerbas? Apresse-se, titio, o senhor não tem muito tempo!”
Tio Alberto bufava. Olhou-me um bom tempo e depois sentou-se, os olhos cansados. Desorientado, apertava as mãos em desalento, respirava profundamente, fitava-me de soslaio. Incomodado, levantei-me e fui ao parapeito da janela. A rua, plácida, com muitas árvores agitando-se impulsionados pela aragem matinal. O rebuliço ventoso levantava uma discreta cortina de pó. Aquele quadro transmitia-me um sentimento quase lírico, uma sensação que ultrapassava as barreiras de minha sensibilidade e repercutia de um modo afônico dentro de mim.... uma tranqüilidade soberba  que contrastava com a situação incômoda que me enfadava dentro da sala.
“Tio”, murmurei, de costas para ele, “não lhe passou pela cabeça que, ao dizer tudo aquilo à nossa família, ao colocar-me numa situação em que facilmente seria criticado e desprezado, em que o resultado último poderia ser o abandono e a solidão, eu não teria pensado em todas as conseqüências com o máximo de escrúpulo? Dificilmente alguém proferiria tudo o que eu proferi se não estivesse investido de uma segurança corajosa. Tio”, girei o corpo, voltando a contemplá-lo, “eu já não queria a hipocrisia calculista de quem crê em Deus por conveniência. Eu não desejava mais o horror indigesto de quem se entrega a um credo sem a convicção da fé. Eu não queria mais aceitar a verdade que me ostentavam como a guia única da vida, não conseguia mais entregar-me à comoção de observar as coisas misteriosas e simplesmente forjar respostas paliativas, refrigérios que não assassinavam as minhas dúvidas. Era uma escolha que se me impunha, e eu a fiz, em detrimento daquela que vocês, por vias diametralmente oposta, elegeram. Esse é o resumo. Espero também que seja o epílogo”.
Tio Alberto articulou uma réplica tímida. Já não conseguia mover-se em prol de coisa alguma, um aperto na garganta constringia-o ao silêncio. Tentou ainda uma acometida:
“E achas que viver sem o consolo de Deus fará de ti uma pessoa mais feliz?”
Sorri, dessa vez com bonomia. Apiedava-me do seu cansaço, via a velhice sulcar o seu rosto e tornar-lhe encanecidos os cabelos, poucos anos antes, abundantes e negros. Percebia que aquela era uma vida condenada à decadência gradual – uma queda lenta e mortal que o paralisaria num torpor preenchido de desesperança, apenas alentado pelas preces e a crença num Deus que lhe confortaria a lamúria de viver com o corpo degradado com a promessa de eterna bem-aventurança num outro mundo, reluzente de promessas de satisfações e sorrisos. Toquei o seu ombro:
“Tio, acredito que a felicidade não seja uma dádiva gratuita ou aleatória, e sim a conquista de uma situação onde a dor é pouca ou nenhuma. A ordenação misteriosa que criou o mundo, seja ela o que for, não o fez para deixarmos de sentir a dor. A existência da dor é mais sublime que o florescimento do riso, porque a dor nos submete à reflexão, à mudança, à transformação. A eternidade da felicidade é algo tão irreal que não a desejo sob hipótese nenhuma. Quero, sim, viver com a satisfação de quem descobriu que o sofrimento e a dúvida são os legados inerentes à nossa condição de homens, e que não deseja abandoná-los sob o pretexto de uma proteção celeste ou as promessas de uma existência de prazeres. Quero viver, sobretudo, sob o signo da contemplação reflexiva, o olhar-pergunta que não indaga, a palavra que não responde,  o pensamento que não se submete a qualquer barreira. Eu não nego a existência de nada –  acredito nas possibilidades infinitas da vida e na perplexidade original e indescritível do homens frente ao mundo.  É o único império sob o qual vale a pena viver”.



Numa manhã de junho, fui acordado por um garoto pálido, que com ar espavorido batia na minha porta e aguardava que lhe permitisse a entrada apertando as mãos, certamente ansioso demais para aquietar-se. Trazia um embrulho amassado, amarelado e desagradável ao toque, que me entregou com uma pressa evidente de se desvencilhar da tarefa. Já sozinho, abri o envelope: era uma espécie de intimação materna que me vinculava à obrigação de comparecer frente à família inteira, no terceiro domingo do mês. A missiva fora assinada por todos os familiares de que me recordava, e era clara ao enunciar que ninguém ousaria convencer-me da veracidade das crenças que eu tão publicamente renegara. O encontro teria mero caráter formal, diferente do usual entre pessoas do mesmo sangue. Na mesma, exortavam-me a destruir a carta tão logo tivesse apreendido tudo quanto nela se consubstanciava, e não abdicasse de forma alguma ao comparecimento. O local do encontro era uma fazenda quase abandonada que pertencia a nossa família, localizada no perímetro rural de uma cidade periférica da metrópole. Refleti muito se deveria efetivamente comparecer à intimação – já não tínhamos dito tudo quanto pudesse importar para a situação? Por que seria necessário um novo embate, um novo confronto de perspectivas que não podiam conciliar-se? Embora tivesse escrito de forma tão surpreendente e solene que não pretendiam converter-me ao credo que adotavam, não podia deixar de duvidar dessa posição tão indulgente. Decidi-me a ir, movido mais pela curiosidade que pela necessidade de entender-me com os meus.
Embora relativamente curta, a viagem foi cansativa. O trânsito estava lento, a marginal resfolegava sob o bafo quente dos motores que tornavam o ar frio uma confusão de sons e ruídos desagradáveis. Já era final de tarde quando cheguei. O vento silvava, gélido, inquietando as mirradas copas das árvores e torvelinhando as montanhas de folhas secas que jaziam na relva. De longe, contemplei a casa de madeira ruim. O telhado estava enegrecido pelas chuvas e a pintura quase totalmente descascada. Um tom de desolação e abandono irremediável cobria como um véu a imagem da fazenda meio agreste em sua quietude.  Era um lugar insólito para empreender uma reunião familiar, mas já não me competia julgar os desvarios de uma família de fanáticos. Dispus-me a acabar logo com aquilo. Marchei até a entrada, estaquei à frente da porta e olhei ainda uma vez para as árvores melancólicas e turvas na semi-escuridão que se ia construindo no horizonte.
Entrei lentamente, sentindo no rosto o bafo de mofo que se desprendia das tábuas antigas. Embora imersa numa penumbra que tornava difícil a distinção de qualquer coisa sólida, a casa parecia ainda guardar um certo aconchego, uma ternura longínqua cuja percepção se devia mais às minhas lembranças de menino que ao apreço às coisas vetustas. Com os braços estendidos, tentando tatear alguma coisa para me orientar, cheguei ao centro da sala, desorientado.
Repentinamente, como num acordo silencioso, velas dispostas em círculos sobre as velhas mesas carcomidas de cupins começaram a acender-se, iluminando todo o âmbito empoeirado da sala. Sombras enormes desenharam-se nas paredes, rostos soturnos apareceram iluminados pela luz bruxuleante. Eram meus familiares, todos vestidos de negro e com os semblantes inquisidores. Estavam dispostos um atrás de cada vela, também em círculo, e permaneceram silenciosos por vários segundos.
“Que brincadeira é essa?”, berrei desconcertado.
“Permaneças calado até que te seja dada a permissão para falar”, disse minha mãe num tom solene. ”Estamos aqui para julgar o teu procedimento leviano e cominar-te uma pena que expie o teu crime nefasto”.
“Crime?”, indaguei atarantado, fitando todas as faces que agora pareciam de cera, dada a impassibilidade com que se tinham revestido. “Não cometi qualquer crime, a consciência não me aponta uma falha sequer nos meus atos que possa merecer essa qualificação. Que espécie de tribunal ridículo pretendem imitar? Acreditam que na minha conduta exista alguma indeterminação, algum indício de apodrecimento moral, que faça jus a uma punição? E como podem se investir de prerrogativas punitivas? E com que direito?
“Permaneças calado até que te seja dada a permissão para falar”, repetiu minha mãe. “Contudo, em consideração às tuas indagações, direi apenas que estamos investidos do poder sagrado ao qual nos filiamos no dia de nosso batismo. Tu, que renunciaste às crenças que uniram e construíram o nosso tronco familiar sob a égide da virtude e da religiosidade, não podes compreender como o direito de punir nasce tão somente das prerrogativas religiosas com as quais, agora, autorizamo-nos a composição deste tribunal. Este tribunal é legítimo porque o direito ao qual tu reclamas não se encontra nas leis ou tampouco na ordenação terrena deste mundo, e sim na ordenação divina que nos foi ditada. Nós representamos o brado de Deus, o seu poder manifesto e inquestionável, a sanha de seu braço poderoso: nossas prerrogativas são tão inquestionáveis quanto a idéia de nosso Deus”.
“Idéia mentirosa, leviana e pútrida!”, gritei. “Como um poder pode nascer tão somente de si mesmo? Como podem reivindicar para si o poder de um Deus que só se revela no mistério, na dúvida, na fumaça, e que ao mesmo tempo exige de nós uma crença inabalável, própria dos seres perfeitos, sem ignorar que somos feitos de barro, de sangue, de descrença, de indecisão? É sob essa bandeira irreal que pretendem construir a minha punição? O que diz não tem sentido, mãe. O que fazem não tem sentido!”
O júri não titubeou. Nenhum deles sequer esboçou um gesto de indecisão. Contemplei durante bastante tempo aquelas faces que sinceramente amava, e cuja dureza agora ofuscava qualquer laivo de ternura que eu pudesse demonstrar. Fitavam-me sem desviar o olhar, imersos num silêncio abominável cheio de acusações e conclusões.
“Teu pai”, proferiu meu tio num tom glacial, “também aninhou no espírito a descrença infalível. Não tens idéia de como nos custou, há alguns anos, infringir a ele o mesmo júri que ora se abate sobre ti. Ele tinha uma descrença ainda mais profunda que a tua, e no entanto entregou-se sem resistência ao nosso jugo e pereceu sob a punição que incidimos sobre a sua cabeça. Não espere misericórdia ou clemência no teu julgamento. Não esperes ouvir aqui a acusação, a defesa e o libelo: eles já existem independentemente do teu reconhecimento, já estão sendo processados no seu íntimo há bastante tempo. Convocamos tua presença aqui tão somente para que pudesses atentar na existência desse veneno que, a partir de agora, começará a penetrar a tua vida e destruí-la. Abdicaste do sentido superior a todos nós, o significado humano que nos identificava, e por isso já não mereces a existência que nós engendramos para ti. Chocaste o teu medo particular com o nosso medo íntimo, compuseste um estranhamento que nos repeliu mutuamente e tornou possível essa situação de trágica calamidade. Os nossos medos já não são os mesmos, eles já não se identificam, já não se reconhecem: são feitos de outra matéria e de outros fluidos. Quando, ao destilar as tuas heresias sobre os nosso espíritos atônitos, revelaste o teor inadmissível de teus pensamentos, já estavas condenado ao desespero que, ora, será o sentimento mais vívido em teu seio. Não te apercebeste, mas já naquele momento era possível ver o nosso julgamento pronunciando-se nas circunvoluções de tua mente e externando-se numa diminuição desesperada de tuas próprias pupilas. Sim, naquele momento, quando tuas pupilas diminuíram a ponto de não se distinguir sequer o brilho negro que deveria estar presente nelas por conta das palavras tão atrozes que exprimiste, naqueles segundos de angústia recíproca, tu sorriste apenas para dissimular um justificável desconforto – e o medo mais cru pintou-se em teus olhos...”
“Estão alucinados”, murmurei balançando a cabeça, “não se explica de nenhuma outra forma essa...”
“Não há qualquer palavra que possa explicar esta situação, meu caro”, interrompeu meu tio. “Esta conjuntura que se ergueu por nossas ações tornou-nos seres irreconciliáveis. Enquanto tu descobres em ti mesmo a impossibilidade de nos compreender verdadeiramente enquanto homens e mulheres convictamente engajados nos ‘pressupostos religiosos’, nós vemos em ti uma planta que cresceu sob os nossos pés mas que não carrega mais a nossa essência. Houve em ti, em algum momento de teu crescimento, uma deturpação do sentido que procuramos inocular no teu sangue e no teu pensamento. Teu caminho, que deveria ser uno, indivisível, impossível de abandonar, bifurcou-se – ou trifurcou-se, não sei – e escolheste a via oposta. Não posso deixar de lamentar esse fato, mas reconheço o direito subjetivo que tu sempre detiveste para fazer tal escolha. Todavia, também deves ter em mente que o nosso direito de discordância também possui os seus instrumentos peculiares. Podes invocar diversos direitos que muitos chamam ‘positivados’ – ampla defesa e contraditório, ‘devido processo legal’, ‘juízo natural’, liberdade de expressão, repulsa inarredável dos ‘tribunais de exceção’. Podes elencar todas essas garantias e direitos, e ainda assim não arredará de nós a legitimidade que dita o nosso procedimento. Sabe por quê? A legitimidade que nos respalda é supra-positiva, não se sustenta em qualquer direito escrito ou consuetudinário que tua mente arguta possa reclamar. O nosso poder transcende as coisas deste mundo porque busca a sua baliza fundamental naquilo que temos de mais misterioso e reverenciável: a religião que abraçamos. Estás devidamente informado do nosso poder e de nossas intenções. Já não nos cabe acrescentar mais nada. O teu processo, aqui, está terminado. O libelo, já o tens incutido na mente e nas idéias, já não podes libertar-te dele, nem mesmo olvidar o seu conteúdo. Não é ele delimitado lingüística ou semanticamente, não possui ele qualquer ambigüidade que possa ser gerada pela imprecisão das palavras: o libelo é pura sensação mística, inarredável influência que te há de guiar e absorver-te nos menores atos. Despedimo-nos de ti legando-te ao resto de vida que ainda terás de suportar. Rezaremos por ti, acenderemos velas de cera amarela, longas e grandes, para orar pelo repouso de tua inquietude. Recebe o nosso julgamento e guarda-o no íntimo. Estás condenado, é só o que nos basta para reconciliar o nosso tronco e congregarmo-nos na antiga placidez. Vai.”
Ao desfechar sua fala, meu tio curvou a cabeça e passou a murmurar, muito mansamente, uma oração de contrição. Todos os familiares imitaram-no. A atmosfera lúgubre lembrava a de um velório, as teias de aranha e a poeira vetusta aumentavam o tom de desolação e abandono que nos envolvia a todos. Contemplei silenciosa e estupidamente toda aquela cena singular, até cerrar os olhos e sentir dentro de mim um irremediável descompasso entre o mundo que me cercava e a realidade que se processava em meus universos particulares. Silente, voltei às costas ao grupo circular e caminhei rumo à porta. O burburinho tornou-se mais discernível enquanto eu marchava lentamente. Quando transpus o limiar, percebi que a noite já baixara totalmente o seu véu de escuridão sobre a terra, e apenas um luar alvo, muito alvo, fazia-me companhia naquela hora tão melancolicamente bela, tão inexplicavelmente bela.

domingo, 22 de abril de 2012

Espelho Quebrado...


            Primeiro considerou o longo caminho que se desenrolava na forma de aléias de pedras brancas que se perdiam ao longe, desembocando numa cadeia de montanhas cujos picos brancos resplandeciam com a luz do dia nascente, para depois considerar a monstruosidade de seus pés descalços e ensangüentados que mal agüentavam com o peso do corpo. Era com um sentimento de íntimo orgulho que observava na sua pele as feridas que porejavam um sangue fétido, e os olhos não conseguiam conter a imensa alegria ao ver a seus pés, num trapo hediondo de sangue e horror, um cadáver de fisionomia idêntica à sua, com a garganta aberta e os olhos opacos. Na destra ainda segurava uma faca escarlate cujo cabo já se tornara visguento e insuportável ao tato. Ele ajoelhou-se e examinou o corpo morto, como se investigasse a existência de algum resquício distante de vida a tremeluzir no olhar imóvel. Ficou algum tempo acariciando a pele lívida do outro, rindo-se sadicamente do esgar desesperado que se desenhava naquele semblante cheio de um ódio inaudito, até erguer-se lentamente, ainda fitando o cadáver. Quando a contemplação silenciosa já não cabia na sua satisfação, ele permitiu-se gargalhar de uma forma malévola que arrepiou os seus próprios sentidos. A gargalhada estendeu-se por todo o seu sangue como um fluido de gelo que fechou sua boca abruptamente, mas o riso ainda ecoava nos seus ouvidos quando se ergueu da cama num arranco violento, suando, a lua alvacenta iluminando fragilmente o seu quarto. “Sonho estranho”, disse consigo, o peito opresso. Temeu durante alguns segundos que tivesse deixado escapar algum grito ou mesmo uma gargalhada que revelasse aos pais, que dormiam próximos do seu quarto, que estivera sonhando, mas o medo dissipou-se rapidamente, porque o único som que escutou foi o bater oco do seu coração.
            Sentou-se na cama e ficou olhando um pedaço mais escuro do assoalho, sem cansaço ou consciência. Desperto, contou os pisos que se distribuíam harmonicamente, em losangos caprichosos e lisos que o surpreenderam por não apresentarem qualquer mácula aparente. Uma limpidez brilhante cobria aqueles pisos geometricamente recortados, e ele perguntou de si para si se valia a pena ter uma forma definida e imutável, ser um liso losango ligado a outros iguais a si, submetido ao pisar perpétuo de pés que sempre haveriam de machucar-lhe a superfície, apenas pela certeza de resguardar-se da imprevisibilidade de não possuir destino certo? Pois os losangos do piso tinham a sua missão e essência devidamente representada pela própria função, que era a de ornar o piso e torná-lo agradável às vistas e aos pés – nada ultrapassava ou modificava sensivelmente essa função, e eles, se consciência tivessem, poderiam amparar-se perpetuamente no consolo de terem seu lugar no mundo, um lugar seu por direito, impossível de ser usurpado. Ele ficou alguns minutos refletindo sobre essa idéia, sem pressa, os olhos agora acostumados à penumbra. Começou a caminhar pelo quarto, sentindo uma vontade terrível de fumar, como já fizera algumas vezes, escondido.
            “Não consegue dormir?”, indagou uma voz que vinha do umbral da porta. Ele voltou-se, observou a figura silenciosamente, mas não respondeu. Apontou um caderno negro em cima da escrivaninha. Sobre a capa, repousava uma caneta prateada a reverberar a luz do luar.
            “Estava escrevendo, então?”, a figura adiantou-se, e a quando a luminosidade natural bateu-lhe no rosto, foi possível distinguir o sorriso que ornava o semblante de feições macias. Os olhos aquilinos de pupilas alargadas denotavam um gênio tenaz que parecia suavizar-se pela bonomia inata que resplandecia em seus gestos.
            “Não é conveniente que fique aqui muito tempo, Rosana”, respondeu-lhe, os braços cruzados. Tentou demonstrar certa irritação, mas não conseguiu. Os músculos faciais não enrijeceram da maneira que ele desejava, e a fisionomia continuou simplesmente pensativa.
            “Somos primos, meu lindo, não há nada de mais no fato de eu conversar um pouco com você no seu quarto”.
            “Concordo, mas deve concordar que um papo entre um casal de primos, no meio da madrugada, perto de uma cama, num quarto iluminado pela lua... não é o quadro mais casto que se possa conceber”.
            Rosana libertou uma risada argentina, que o moço temeu por poder perfeitamente despertar os seus pais. Ela avançou para a escrivaninha, arrebatou o caderno e o folheou, de pé. Ela vestia uma camisola que delineava seu corpo adolescente, ao qual faltava ainda aquele apuro místico que somente o tempo pode legar a uma mulher. Ele observou-a numa quietude absoluta, recordando-se que há alguns meses ele tivera aquele corpo nos braços e sorvera nele um prazer físico que o embriagou por horas.
            “Acho melhor você deixar o caderno onde estava, virar as costas e voltar para o quarto. Juro que conversamos amanhã pela manhã, logo que me levantar. É melhor”.
            Ela apenas volveu o olhar para a janela, balançou a cabeça e bocejou.
            “Não seja bobo, Carlos”.
            O moço apertou os lábios, e sentou na cama. Voltou a olhar para os losangos. “Descobri outra vantagem de ser um losango de piso: não nutrir desejo sexual por ninguém, menos ainda pelas primas”.
            Rosana aparentava ler com atenção algum trecho do caderno. Declamou em voz alta:

Faces voltadas para a lua
Noite áspera fruindo a própria escuridão
Sorrisos cálidos erguendo-se ao céu envaidecido.

E como um rosário amoroso de luz, traduzindo uma oração,
O reflexo da lua beija a água do rio adormecido.

Eu não sei trovar sem cantar o infinito.
            Ela ficou parada, os olhos ainda fitos no papel.
            “Não entendi o verso final”.
            Uma lufada de vento inquietou as cortinas. Carlos suspirou, espreguiçou-se, olhou com tédio para o caderno aberto nas mãos da garota, que o olhava agora com atenção.
            “Nem eu mesmo sei. Ultimamente tenho escrito muita coisa sem sentido”. Ele calou-se um pouco, sentindo uma emoção aquecendo seu sangue e criando um bolo ligeiro na garganta. “Quando você não tem idéia definida de coisa alguma, quando o seu mundo é composto apenas por etéreas teorias que tudo explicam mas que não levam a qualquer conclusão prática, a literatura serve como um derivativo ao alcance do tédio. O homem escreve sobre as páginas que se apresentam à sua frente com a alma cansada, mas ainda aspirando a ideais que estão muito acima deles, uma ânsia de se descobrir completo e unido ao mundo que tenta compreender...” A sua voz tremeu um pouco, como se ele não soubesse mais como completar o pensamento. Fixou os olhos em Rosana, ergueu a destra, tentou esboçar um gesto que saiu tão impreciso quanto a forma das próprias reflexões. “Eu não sei explicar”.

Foi com ternura que Rosana achegou-se ao garoto, tomou-lhe as mãos e pousou-as sobre as suas.
“Por que precisa explicar? O importante não é sentir, como você me disse tantas e tantas vezes neste mesmo quarto?”
Ele aborreceu-se com a lembrança, levantou-se, olhou através da janela aquele cenário tão conhecido das suas noites de insônia. Tão bom seria o mundo sem as palavras, tão boa a vida sem os pensamentos insinuando-se no sangue, irrigando os músculos, torrentes de dúvida e medo se estendendo aos gestos e perpetuando a história da aflição e da dor... Alisou os cabelos que lhe irritavam os olhos, tentando decifrar naquele silêncio repleto de grilos um segredo pelo qual efetivamente valesse a pena morrer. Ah! Quantas noites devassara assim, o corpo derreado na janela, estrelas coruscando num céu que se esvaía nas próprias e infinitas profundezas, tudo indefinido, etéreo, fascinantemente inquietante... Ah! O desejo sempre vivo de integrar-se àquele universo todo que lhe envolvia, afastar de si o ódio enorme e profundo da vida em insano movimento, penetrar em si mesmo e deixar de ser um indivíduo e tornar-se apenas uma coisa pensante, e só, só, só!
Rosana levantou-se, cingiu-se ao corpo do garoto. Puxou o rosto dele contra o dela, contemplando-o de muito perto, transmitindo-lhe o seu hálito de menta em meio a um respirar levemente alterado. Ele endireitou o corpo, cingiu-lhe a cintura, esmagou-lhe os seios com a pressão de seu peito, e beijou-a com uma fúria lasciva que estava a quilômetros de distância do desejo. Ficaram enlaçados, ela com a cabeça apoiada nas espáduas dele, pensando em mil coisas, o coração irrequieto, sentindo-se prestes a desfazer-se em arrepios por sentir, apertado contra si, todo o calor daquele garoto que a intrigava e atraía – ele com a mãos acarinhando distraidamente as costas da moça, as pálpebras derreadas, tristemente preso ao contato doce da prima.
Subitamente desprendeu-se daquele enleio, afastou-a rapidamente e precipitou-se na cama, repentinamente desesperado. A garota assustou-se muito com a mudança de atitude, recuou dois passos até encontrar o parapeito da janela, de onde, os olhos atônitos, contemplou a face decomposta do primo.
“O que houve?”, interpelou suavemente, uma nota de carinho vibrando na voz cautelosa.
“Nada”, respondeu Carlos, a face sombria. “Quero que você vá embora já... que me deixe em paz... só isso”.
“O que eu fiz?”, retrucou a garota, melindrada. O comportamento estranho de Carlos a aborrecia muito.
“Nada... só quero que vá embora”.
Carlos deitou-se com o corpo virado para a parede, sem prestar atenção à prima, que se retirou depois de contemplá-lo ainda por um minuto. Uma aragem suave entrou no quarto, remexeu as cortinas, inquietou as resmas de papel dispostas em cima da escrivaninha, despertou o caderno que, aberto, ergueu algumas páginas numa sonolenta indagação. “Por que não consigo livrar-me desse permanente desespero? O que me leva a tratar rudemente pessoas que não possuem nenhuma culpa?” Apertou nas mãos a coberta, as unhas fazendo pressão contra a fazenda felpuda. “Oh! Não fosse essa convicção de estar representando uma farsa!”
Sentou-se na cama, agarrou o celular que deixara sob o travesseiro, e discou um número. Ouviu o chamar ritmado e insensível repetir uma, duas, três, seis vezes, até uma voz rouca e indolente murmurar “Alô?”.
“Gustavo?”, pronunciou Carlos lentamente. Do outro lado da linha, o moço respondeu apenas, com a mesma voz sonolenta: “O que você quer? Acho que não deve ter desaprendido a ver as horas e a proceder com o mínimo de conveniência nas suas relações, não é? Por isso, irei pedir a você que...”
“Deixe para lá as conveniências e o horário, preciso dizer-lhe uma coisa. Eu tive um sonho muito estranho. A impressão que ele produziu em mim é difícil de ser explicada, e o significado dele escapa-me. Preciso contá-lo a alguém, por isso elegi você para a tarefa de escutar-me. Ouça. Eu matava, com um talho na garganta, uma pessoa de fisionomia idêntica à minha, e depois gargalhava, cheio de crueldade, como se fosse um sádico. O problema não é o fato de eu ter sonhado a morte de uma pessoa assassinada por mim, nem ter rido como um maluco depois de tê-lo feito, mas o fato de a pessoa aniquilada ter um semblante igual ao meu... E como estava desesperado o semblante daquela pessoa! A boca contorcida, os olhos raivosos e perplexos, como se ainda não tivesse entendido que estava morta, morta...”
Gustavo pareceu escutar com atenção. O mau-humor por ter sido acordado durante a madrugada desaparecera, o que sobrara era tão somente pasmo. Ele era um grande amigo de Carlos. Juntos desenvolviam conversas eivadas de questionamentos e de uma filosofia incipiente, mais teórica e etérea que prática e sistematizada. Escutou ainda algum tempo o relato do sonho do outro, a face séria escondida no escuro, a orelha latejando devido à pressão do celular.
“Não ocorreu a você, Carlos”, manifestou-se ele, “ que esse tipo de sonho não é mais que uma espécie de antevisão do nosso futuro? Digo nosso, porque comungamos de várias concepções, teorias e filosofias que nos lançam em dúvidas sempre vívidas e poderosas. Nós relativizamos tudo em nossas vidas, Carlos, e o fizemos cheios de uma convicção orgulhosa...”
“Calma”, interrompeu Carlos, a voz aparentando confusão, “ está me dizendo que esse sonho não é mais que a demonstração de um estado psicológico doentio em nós dois? Está me dizendo que nosso futuro é o suicídio?
“Não é isso”, redargüiu Gustavo. “O que digo é que nós, ao abdicarmos de nossos dogmas religiosos, ao adotarmos uma postura de indagação permanente e abrangente, ao colocarmos um ponto de interrogação na moral, nos costumes, no nosso lugar no mundo, no objetivo de nossas vidas, nós fomos excessivamente cruéis conosco. Destruímos nossos baluartes, e nos permitimos viver sob o signo da pergunta. Rejeitamos como inverídicas as verdades que a religião nos deu no seu pacotinho de preceitos cheios de mofo, buscamos nos livros e nos pensamentos uma verdade pela qual pudéssemos viver, mas nessa busca nós perdemos a base sólida que nos sustentava. Caímos, e o impacto quebrou algo dentro de nós. Para o resto da vida, carregaremos uma fisionomia atormentada, cujo reflexo será sempre idêntico ao de um espelho quebrado: os vários pedaços dispostos a reverberar nossa imagem, ainda que lindamente unidos uns aos outros, não deixarão de apresentar uma imagem fragmentada, confusa, avessa à harmonia. Eu cheguei a essa conclusão há muito tempo, e cada vez me convenço mais de que ela será a única certeza que me guiará doravante. Nós procuramos, Carlos, uma verdade que fosse diferente daquela que nos foi entregue desde a infância, uma verdade que fosse produzida por nós mesmo em nossa peregrinação pelo pensamento e pelo sonho, mas a conclusão a que cheguei apenas me assegura que terei sobre mim, até a morte, a inexorabilidade do sofrimento. E esse sofrimento tem algo de diverso do sofrimento das pessoas que não indagam sobre as bases do seu próprio ser, pois ele é mais profundo e poderoso naqueles que buscam um sentido fora dos muros dentro dos quais nos vimos nascidos. Ninguém que se atreva a pensar pode escapar à insígnia do desespero”.
Carlos não objetou nada até Gustavo terminar a fala. O tom tranqüilo do outro o deixou pensativo: ele falava de sofrimento e desespero constantes, mas a voz não traía nenhuma emoção adequada à seriedade do assunto. Notou-lhe essa contradição.
“Você não me entendeu bem. Meu ser, como o seu, terá sempre sobre si o peso dessa crueldade inconsciente, dessa angústia, dessa desolação. Mas eu amo a vida, e embora não veja nela senão uma sucessão de desgraças, há uma graça e um encanto em seus prazeres, que reluto em deixá-la. Já leu Hamlet, não? O príncipe dinamarquês alega que as pessoas não se matam e suportam as agruras por medo do desconhecido. Certo, muito bem, mas isso não resolve o problema. Vivemos com medo e pelo medo. A resposta está nessa afirmação? Se estiver, somos todos uma espécie depressiva e covarde, submetida apenas a uma Vontade universal, como queria Schopenhauer, que se nutre de desejos continuamente perseguidos, saciados, mortos e ressuscitados. A resposta está também na Vontade? E por que não estará também na liberdade impossível de se renunciar, como também a queria Sartre? Para onde olhemos, para onde nos coloquemos a vislumbrar um sentido, esbarramos em conceitos endeusados, em absolutos filosóficos que nos prendem tanto ou mais que a religião ou a moral, e por fim num necessário motivo final. Nossas ações precisam estar marcadas pela sombra teleológica. Se não está, é irracionalidade que não se coaduna com a natureza humana. Se está, é ação condicionada a se repetir até descortinar uma finalidade maior que nós próprios, uma ação que ultrapassa nossa compreensão e apenas nos permite indagar novamente sobre a sua razão suficiente. É um círculo vicioso, que os idiotas que criam sistemas de idéias reputam como passível de ser vencido através da delimitação de um espaço conceitual que sintetize e explique o homem. Mas nós, os artífices da indagação, os obreiros das perguntas que rasgam entranhas e dilaceram a vida, os pedreiros que destroem as casas sob as quais repousam e depois escondem-se sobre os escombros, palpitantes e impotentes, nós vivemos com essa condição irrenunciável de espelhos quebrados lutando para esquecer a própria imagem partida, fitando o mundo com os olhos fechados, porque ele também não é mais que um espelho de dimensões imensuráveis partido em pedaços grandes o suficiente para ocultar sua face fragmentada”.
O vento ainda batia nas cortinas, as páginas do caderno de Carlos erguiam-se de quando em quando, revelando algumas linhas impossíveis de se distinguir na penumbra.
“Se eu disser que já havia pensado nisso...”
“Você já teve todos esses pensamentos”, interrompeu Gustavo. “Não só os teve, como ainda os acalenta dentro de si, e certamente só faltou externá-los. Eu já os havia desenvolvido, e aguardava apenas para dizê-los. Mas não se preocupe tanto. A sua prima está aí, não está?”
Carlos desligou, abrupto. Ergueu-se, foi até o banheiro, lavou o rosto. Examinou, pormenorizadamente, o rosto que se refletia na superfície lisa e perfeita do espelho. Depois enveredou pelo corredor escuro, cujos quadros, pendentes das paredes, esboçavam formas diáfanas. Estacionou uns instantes em frente ao quarto de hóspedes, refletindo. Foi com um leve rangido, que soou como um gemido das dobradiças ásperas, que a porta abriu-se cautelosamente, para depois ser fechada cuidadosamente, como para proteger um segredo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O mesmo tédio dos holofotes silenciosos...

Amigo que me lês (se é que alguém adentra neste espaço ermo, hermético cubículo de palavras abandonadas que guardam sentimentos acres em suas linhas escassas), deves ser uma pessoa entediada. Outra conclusão não posso haurir da tua atitude - afinal, quem se meteria a analisar os escritos de um jovem enfadado senão um alguém capaz de compreender, ainda que minimamente, a carga de galante desamparo que viça na face deste autor? De certa forma, amigo, ambos estamos mal apoitados num mundo de pensamentos hesitantes e desencontrados. Entrevejo certo ressentimento ancestral nesses olhos que percorrem estas linhas - ah, a ânsia de defrontar-se com próprio eu no rosto remoto de uma outra pessoa, a rutilância esfumaçada que permeia a escuridão da alma, a perplexidade. Enrolamo-nos nessa amarga teia de sonhos, desenganos, muxoxos - emergimos de um pântano aparentemente indevassável e nos defrontamos nesta hora de mistério, "vis à vis", alheios a nós mesmos, a essência humana primária perdida nalgum recanto inconcebível. Que sobra de nós? De ti, nada consigo extrair. No ponto em que repouso, sentado deleitosamente numa cadeira almofadada, sem espaldar e sem desejos, só me acodem as forças necessárias para abstrair-me da minha própria humanidade o suficiente para que minha alma se recoste à sombra de alguma esperança muito antiga, muito lisonjeira e irremediavelmente indistinta. E tu? O que sentes enquanto tentas decifrar com fidedignidade esta ordália tautológica? Algum eco de sensações olvidadas assoma no pórtico de sua lembrança? Ou um nó inarredável prende tua garganta a algum sentimento que deve ser repreendido, compactado, escondido, aprisionado? A mim, esse circunlóquio se afigura como uma bela alternativa para sofrear estes ímpetos de arrojar-me numa rotina de autômato, sem memórias ou preocupações, ou precisamente com estas. A alma é dúbia: justamente quando parece se afogar numa placidez que só deve ser praticada nas paragens do Éden, uma cerração indefinível estaciona sobre a limpidez do céu anilado, corporifica-se numa neblina que paulatinamente recrudesce até constituir-se numa hera que escala os montes escarpados da alma e a domina por inteiro. Esse processo tem vários nomes pouco lisonjeiros: escuso-me de enunciá-los. Tu, que agora fitas o horizonte estreito da tua sala, do teu quarto, da tua realidade endurecida, te pões a refletir acerca das minhas considerações, enxugando um suor imaginário e edificando, com medido cansaço, as objeções pertinentes - objeções que teimam em permanecer no terreno utópico de onde nascem usualmente todas as inspirações. Nada te acode, tudo te escapa das mãos espalmadas: chapinhas no lodo do pensamentar, derrapas na fria ladeira do abandono intelectivo. É neste ponto que deixo-te só, a fruir com rancor moderado a letargia de uma tarde de quinta-feira que se vai encaminhando para o crepúsculo, malgrado a melancolia curvilínea que agora se prende às tuas pupilas.

terça-feira, 5 de julho de 2011

E a noite de frio e vento. Lá fora...

Arre, que o torpor dos séculos humanos, carregado com o ranço dos tédios mais denodados, e repassado às gerações supervenientes, está importunando novamente meus sentimentos. É a mesma coisa que se repete com litúrgica pontualidade, com irritante intermitência: primeiro me afogo em uma rotina hirta e inflexível, atento aos meus deveres, comprometido com as obrigações que as pessoas vão empurrando para o meu lado com desfaçatez; depois vou gradativamente perdendo o interesse nas coisas que antes atraíam minha atenção, deixo de perceber os pequenos detalhes que são capazes de infundir algum interesse a uma existência; por fim, depois de superar todas as agruras de um humor suspeito, faço questão de arrojar para longe toda a carga de responsabilidades e deleites que constituíram a nata dos meus dias pretéritos para então embrutecer-me nessa fastidiosa inamovibilidade, que irrita meu senso produtivo e faz-me perder todo o orgulho. É sentimento? É loucura? É indecisão? É apenas o gesto grave de quem já não encontra sentido nas coisas senão no momento em que artificialmente cria esse significado instável, cego e impertinente?

Escrevo isso e entao fito as paredes do meu quarto, um local seguro, caloroso, afável a minha intuitiva solidão. Janela, abajur, celular abandonado na cama, um navio em miniatura esculpido na madeira, um guarda-roupas, um grande espaço vazio no qual pretendo colocar uma escrivaninha, e eu, o objeto menos relevante nessa amálgama de insensibilidade. Desejaria escrever como Fernando Pessoa, oh, não conheci quem tivesse levado porrada, o dono da tabacaria sorrindo, o binômio de Newton arredando a beleza da Vênus de Milo, Deus meu, que digo eu? Tresvariando. Não: é ainda a manifestação do tédio, este galante e petulante e desconcertante e ainda assim fleumático tédio. Contudo, que é o tédio?, pergunta-me o filósofo que habita em mim. Para o inferno a filosofia, o niilismo, o ceticismo, o platonismo, o socialismo, o kantismo, todos esses arcabouços encarquilhados e cegos. Para o inferno, para a puta que os pariu - quem era o autor que dizia que o palavrão tem efeito catártico? Rubem Fonseca, creio eu. Intestino grosso. Sei.

Que fazer, "mon cher ami"? É uma noite de frio e vento. Lá fora... Poderia lavrar uma metáfora com isso, engendrar uma história, quebrar essa monotonia de sangue e gelo que me atormenta. Atormenta? Às vezes desconfio que todo esse descompasso, todo esse propalado desarranjo em relação ao mundo e às coisas seja apenas uma desculpa para desimpedir minha verborragia, para externar uma dor que não sinto, para asseverar sobre concepções que não acredito, divisar cenas que não vejo. O poeta é um fingidor que finge tão completamente que chega a acreditar que é dor a dor que deveras - Fernando Pessoa e seus apotegmas. Nascer de novo seria solução? Ressuscitar para uma nova realidade, na visão dostoievskiana - um caminho plausível.

O fato é que estou farto de semi-deuses.

E é uma noite de frio e vento. Lá fora... Lá fora?

domingo, 24 de abril de 2011

Uma mente vadia...

Não costumo escrever sobre mim neste espaço. Na verdade, há bastante tempo que já não escrevo nada nesta nesga de mundo virtual que já congregou os meus sonhos e preencheu-me de esperanças a vaga mente de criança em rebeldia... A faculdade que abracei não deve ter me auxiliado neste particular. O curso de Direito, em que pese a propalada intenção de produzir profissionais humanistas, na proposta vetusta que secundou o decreto de imperial que criou no país o curso de Ciências Jurídicas, tem demonstrado - ao menos em minha tênue cosmovisão - acalentar o ideal de produzir seres capazes de decodificar as leis e os pensamentos humanos em teoremos linguísticos com conteúdo lógico, quase matemático. Há, obviamente, disciplinas que não se coadunam com essa rigidez, e seria perda de tempo enumerá-las. Falo de essência, de feeling, de qualquer coisa que transcenda a puta hemorragia do mundo cotidiano e investigue com mais nitidez as águas turvas da consciência humana...

Desculpe. Empolguei-me. É ainda resquício de uma existência entregue aos desvarios do sonho. Despi-me disso há algum tempo - não totalmente, é certo. Ainda não me tornei um misantropo, nem aspiro à tranquilidade que, dizem, somente um ermitão empedernido pode fruir em sua cascata de emoções primevas. Quando mais jovem - tenho vinte anos incompletos, no momento - acreditava numa série de coisas que hoje me fazem sorrir. O sarcasmo, que nos meus tempos de pré-adolescência era apenas uma existência parasita e inofensiva, parece invadir-me cada recanto da alma. Há resistência, certamente. Amo apaixonadamente uma princesa de dezessete anos de idade, de olhos verdes, boca magnética e ternura inesgotável. Mas uma boa parcela da alma já foi tomada por um sentimento indefinido, mescla de tédio, descrença, quietude, tranquilidade e sofrimento.

Na verdade, enfarei-me do tempo. Quando quedo silente, cheio de uma reverência ancestral pelas coisas mundanas que são maiores que minha compreensão, percebo que a poeira temporal mancha cada recanto de pensamento que eu possa engendrar, mesmo nos meus paraísos mais íntimos, e então nada mais interessa, tudo se sedimenta num tédio sem remédio, e ao final abandono qualquer quimera. A minha forma peculiar de observar o mundo, a calma com que procuro traduzir minhas impressões e conduzir a marcha de minha existência, não obstante os arroubos que eventualmente se me irrompem, e principalmente a paixão por uma rotina obediente, sem grandes sobressaltos nem emoções, desenvolvida num ritmo homogêneo, é sinal de uma resistência obstinada, uma indignação surda, contra as molas do tempo. Costumo reclamar de forma veemente contra a sua corrida insana, contra esse jeito linear que enseja a perda das melhores horas, trasvestidas em céleres sessenta minutos que mal conseguem abarcar as necessidades rotineiras. As pessoas que me escutam riem, dizem que é normal uma tal situação, que o tempo precisa exercer com bastante fidelidade o seu ofício. Discordo: o tempo tem acelerado a sua atuação, penetrado em domínios em que lhe não era facultada a entrada, e tem tomado de assalto as vidas.

É domingo. A noite já começa a tornar-se mais sólida e perceptível no céu desmaiado. Novamente, consegui escrever apenas o suficiente para deixar impressa uma algaravia de impressões descontextualizadas que mal merecem uma atenção mais cuidadosa. O jeito, pelo visto, é recolher-me ao meu silêncio repleto de palavras arrevesadas, de frases engulhadas em estômagos hipotéticos, de hesitações e imprecisões, e persuadir-me, de uma vez por todas, que não há literatura que baste para conjurar o desespero tão inocente de existir.