sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Na Calçada, poeira…

Contemplava-a com os olhos marcados pela vigília. A imagem que se formava em minha retina era uma nesga de vida que se apresentava sob a forma de olheiras profundas, um sorriso inexpressivo, um tom de cansaço que se comunicava aos membros frágeis. Fiquei olhando o seu semblante durante um tempo bem longo, ela ao longe, andando na calçada com um jeito indolente, um pouco afastada do grupo de prostitutas mais jovens cujo corpo ainda não se degradara com a agrura da profissão. Riam ainda com certa entonação argentina, mas que já se fazia ouvir marcada por uma impostação e uma predisposição para o cálculo e a simulação. De quando em quando uma se adiantava do grupo, ao ver o sinal de um freguês que se achegava num carro de vidros negros que se abriam apenas o suficiente para que o seu ocupante pudesse trocar algumas palavras com a garota e combinar o programa. Mas eu não prestava muita atenção a essas carnes ainda frescas. Interessava-me aquela mulher de porte mendicante, com rios de velhice precoce a sulcar o rosto, coxas finas e seios achatados que mal faziam pressão às roupas excessivamente justas.

Recostei-me no assento e fechei os olhos por um instante, depois de fitar a paisagem urbana a que sempre me vi preso por um sentimento estranho de inquietação. Os postes públicos estavam acesos, o asfalto resplandecia com a luz crua que incidia sobre ele. Os umbrais dos edifícios eram ocupados por um ou outro mendigo. Dois deles tinham nas mãos visguentas um saco plástico que levavam periodicamente ao nariz, num contínuo esvaziar-se e encher-se. As lojas, fechadas, pareciam agressivas em sua mudez, como se estivessem preparando as energias e os ardis comerciais para o dia que nasceria horas depois, repleto de sede e pressa. Alheia a tudo, a prostituta continuava a andar, correndo o olhar provavelmente mortiço sobre as calçadas pouco movimentadas, procurando um cliente. Meu celular vibrou, mas não me movi. Aquele instante era pouco para abarcar a extensão de realidade que se impunha à minha consciência.

Perguntas redemoinhavam, pensamentos fundiam-se e dissociavam-se, e a noite não elucidava minhas dúvidas. Eu não me sentia mais que perplexo. Mas era uma perplexidade estranha, tranqüila, cheia de um sentimento de pasmo silencioso manchado de aceitação. A mulher ia-se afastando com vagar, a bolsa pendendo no braço frouxo. No seu rosto residia uma expectativa, no silêncio da calçada seus passos deviam ecoar ocos. As nádegas escassas mal rebolavam, nas costas manchas roxas viam-se, nítidas. E ela, sem saber, pertencia-me naquele instante, em toda a sua essência manifesta e imanente, presa eternamente aos minutos em que meu olhar percorria os seus contornos e minha reflexão abandonava os limites do perceptível, elucubrando a sua vida escura de calçada, pó e noite.

Liguei o motor, fiz o carro deslizar pela estrada até emparelhar no passeio público onde a mulher agora aguardava. Ela olhou, surpresa, o vidro negro do automóvel abrir-se cautelosamente e do interior do veículo saltar uma nota amarfanhada que caiu-lhe aos pés sem ruído. Acelerei subitamente e só olhei pelo retrovisor ao dobrar a esquina. Ao longe, atrás, a mulher fitava um ponto da calçada, parecendo hesitar.

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