terça-feira, 1 de abril de 2008

O Enterro

Para A., como extirpável lembrança


A terra breve e as construções cimentadas das circunvizinhanças ainda estavam intumescidas pela indecisão da aurora quando Versamann despertou. Primeiro abriu os olhos de pálpebras endurecidas e piscou-os durante algum tempo, para em seguida soerguer o tronco e olhar perplexamente o quarto. Os móveis e as paredes guardavam um modesto tom azulado que vinha filtrado das janelas cerradas. Versamann sorriu e isso o fez desinteressadamente satisfeito. Levantou-se, despiu o pijama e postou-se definitivamente nu em frente ao espelho, observando seu rosto onde pretejava uma hera negra e cabeluda.Ficou refletindo durante uns minutos, imóvel.”Como é estúpido acordar”, pensou. “O silêncio do sono se assemelha de tal forma com a morte que dormir pode ser considerado um ato vicariamente nostálgico, de substituição.” Essa reflexão o agradou tanto que atentou nela com exclusividade, tentando condensá-la num aforismo dramático, de grande efeito estilístico. “Ora, estou perdendo tempo”, ponderou, “minha mente está inventado pretextos para esquecer-se do que determinei a mim mesmo.” Sorriu amargamente, como se só agora tivesse lembrado de algo importante. “Isso, hoje é o dia do meu dever. O dever.” Coçou o queixo. O céu se recortava cor de chumbo contra a janela. Vestiu-se.

“Credo, rapaz, você está parecendo o demônio”, disse-lhe a mãe – uma estranha figura banal – ao vê-lo vestido totalmente de preto. Versamann surpreendeu-se como fato dela estar acordava àquela hora. A mãe ficou observando-o com olhares exprobratórios e calados. Versamann notou, no espelho que se equilibrava na parede defronte dele, que sua própria pálida fisionomia dura cingia-se no vidro à loura parte posterior do crânio da mãe. Aquilo lhe comoveu indizivelmente, com uma intensidade tão exclusiva que ficou irritado com a própria comoção. “Não tenho fome”, disse sem ênfase, olhando a mesa posta. Caminhou marcialmente até a porta.

Na rua observou a neblina da madrugada que se fundia ao céu num movimento lento e inflexível – ou seria a sua vista fatigada de absorver a claridade do sol? Contemplou com curiosa estranheza a rua de areão úmido, as casas indistinguíveis na cerração; passou uma pessoa e Versamann não se espantou ao notar que no lugar de um rosto ela tinha uma caricata máscara embaçada.

Versamann se sentia apaticamente desperto, a poeira milenar da raça humana o envolvia num torvelinho de cavernosas lembranças de amor, suor, sangue e sofrimento. Postou-se no meio da rua, a neblina densa ao redor de si. A boçalidade daquela rua triste não o agredia, estava já acostumado a odiá-la constantemente em suas noites sombrias perenemente atravessadas por febres e presságios. A civilização humana lhe inspirava o mesmo desprezo; não a amava como dizia a todos; a hipocrisia, ah!, a moralidade dos caminhos simplórios, o infinito temer sem reagir. Versamann vivia como uma larva repulsiva que se violentava intimamente para continuar vivendo em meio a outras larvas de igual asquerosidade; experimentava satisfação apenas na escuridão do seu quarto, bloqueado e trancado por dentro, o mundo fragmentado na janela, os fios da normalidade pendendo impotentes ante a liberdade de sua reflexão. Mas havia o sentimento, aquele sentimento que escarvava seu âmago e o suavizava – era preciso destruí-lo. Era preciso destruí-lo? Versamann dobrou fortemente os dedos em direção às palmas.

Era preciso dar o golpe de misericórdia, dizia uma sombra negra que grassava nos seus pensamentos. Era preciso destruir à lâmina de espada e a fio de machado num golpe seco e breve, profusamente sanguíneo. Era preciso, era esse o seu dever... “A fortaleza, a fortaleza da escuridão”, murmurou Versamann ao ajoelhar-se e sentir inúmeras pedrinhas atritarem seus engonços. “É preciso! E que seja aqui mesmo”, disse ainda com convicção ao dobrar o pescoço ao golpe.

Quando desgrudou as pálpebras, Versamann sentia uma violenta enxaqueca. Enxergou de pronto um pequeno caixão de chumbo perto de si, um pequeno caixão de alças douradas das quais pendiam, como cipós, fitas inquebrantáveis onde se podia ler em caracteres negros: Requiescat. Versamann resfolegava suando, as mãos contraídas no peito, a boca entreaberta. “Acabou, ou quase”, refletiu com amargor. Lentamente Versamann adiantou-se para o caixão, segurou as alças, preparou os músculos e as articulações, e num arranco o suspendeu. A neblina agora estava mais cerrada; era esquisito, mas o céu parecia inclinar para a terra, pois o tom de chumbo incorporava-se à neblina de tal maneira que já não se podia distinguir sequer as casas que circundavam a rua.

Versamann começou a andar em linha reta, sem se importar em ver-se privado de enxergar o caminho. Esse detalhe tão preocupante, que o atormentaria atrozmente noutra ocasião, quase não o interessava agora. Necessitava caminhar, necessitava manter a frieza e o raciocínio claros, lúcidos... necessitava sobretudo livrar-se daquele caixão de chumbo. Sabia intuitivamente que aquela neblina o levaria a algum lugar preparado para receber o ataúde, provavelmente preparado por ele mesmo, embora não pudesse se lembrar quando nem onde. A névoa-chumbo crescia a sua volta e o envolvia como uma aura. “Sem hesitar!”, exortava a si mesmo.

Andou muito tempo. Perdera totalmente a noção do tempo. De vez em quando afloravam reminiscências em seu pensar embotado, mas elas eram inconsistentes e frágeis, como se fossem apenas idéias irreais.

Chegou. Devia ser um cemitério, mas um cemitério singular, sem cruzes nem leitos de pedra. Versamann caminhou até uma cova rasa e aberta.

Sentia um violento calafrio eriçar-lhe os pêlos dos braços, mas continuou. Um espasmo que lhe prejudicou a precisão dos movimentos percorreu seus braços ao depositar o ataúde do sentimento parasita na cova. Cobriu-a de terra, mas sem pensar, a face inexpressiva, olhos enxutos, salgados. A neblina penetrava insidiosamente a sua pele, as veias carregavam um fluido denso, rançoso de desgosto, decepção e martirizante alívio. Matara-se? A lembrança da mãe, em especial a parte posterior do seu crânio refletido no espelho, emergiu num gemido à superfície de suas idéias, intumescida de vago desespero.

A cerração era total.

Num impulso convulso de dor Versamann ajoelhou-se sobre a cova. E mal teve de murmurar uma sílaba de reconciliação e saborear um gelado grão de são que lhe roçara a comissura dos lábios porque a neblina, num gemido compridamente silencioso, o absorveu.

VANILDO SELHORST DANIELSKI

Um comentário:

Anônimo disse...

Ola!!
Vanildo, voce tem e-mail? gostaria de conversar com vc, meu e-mail é lauritalopes@terra.com.br