quinta-feira, 9 de julho de 2009

OLHARES ENTRELAÇADOS...

A palavra escapou-lhe repentinamente dos lábios já entreabertos, e o olhar, dantes firme, tornou-se estático, estupefato. O semblante ficou lívido. Fitou assombrado toda a multidão que esperava suas palavras, paralisado. O silêncio não durara ainda um segundo, e já todo o seu corpo tremia, a vergonha ruborizara seu rosto, a respiração tornara-se impossível nos pulmões agoniados. Sabia exatamente o que deveria dizer, a entonação adequada, o timbre de voz necessário para angariar a simpatia dos ouvintes, os gestos que, calculada e tranquilamente, tinha que esboçar no ar eletrizado pela expectativa. Mas, justamente no instante de maior segurança, naquele inviolável segundo em que o homem crê possuir nas mãos o poder de esmagar o insucesso, faltou-lhe a clareza de uma sílaba, e a palavra que já saía pressurosa engasgou-se, silenciou, escondeu-se nalgum recanto obscuro, impedindo a passagem da torrente de palavras que ansiava por inundar as consciências. Decorreu ainda mais um segundo. O orador, imóvel em seu fracasso, contemplava a multidão com olhos mortiços. Uma tristeza infinita cobria-lhe as íris e invadia as pupilas angustiadas e sombrias, diminuídas pelo horror. A multidão fitava-o em meio a um burburinho insidioso. Provavelmente a imagem do homem que se interrompera no seu discurso pretensioso traduzia a estereotipada visão do ridículo, a espalhafatosa imagem do perdedor que causa riso e piedade à turba. Durante um par de segundos que não passava, orador e multidão desafiaram-se secretamente – entrelaçando olhares que teciam na atmosfera ácida uma animosidade antiga e inamovível. Um ódio irônico fundia-os numa mesma miséria superior a eles próprios. Os olhares entrelaçados talvez permanecessem imutáveis por muitos minutos se o orador, num repelão intempestivo, não rosnasse um “muito obrigado” e se retirasse do palco, permitindo à multidão emergir da letárgica contemplação, estremecendo numa risota que ia muito bem com o tom alcalino do céu

Um comentário:

Alex Pinheiro disse...

se o arauto falido não é comido pelas próprias palavras, o é pela ausência delas,,, rs

Belo, Vanildo,,, sempre uma paixão comedida com sua letra ofegante e sua proposta ácida. Parabéns, mais uma vez!

Abraços e geniais invenções!