quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

UMA HISTÓRIA DESPRETENSIOSA (retomando as atividades)

Chamado ao palco em uma conferência literária, Escritor sobe sorrindo as escadinhas e cumprimenta seus colegas de ofício – todos empertigados e solenes, de mangas compridas e colarinhos ajustados. Ao fundo, uma saraivada de palmas entusiásticas. Num exórdio, o presidente louva a qualidade inegável dos romances de Escritor, seu estilo elegante, suas análises subjetivas mas mordazes, sua inata capacidade de analisar as mazelas psicológicas das pessoas e transportá-las para seus livros, traduzindo magnificentemente a própria essência humana. Escritor sorri, divertido com o tom professoral e hiperbólico do presidente. Por fim, Escritor é desafiado a contar uma “história despretensiosa” aos colegas e ao público que ocupa as centenas de poltronas estofadas do teatro. Ele gargalha um momento – uma curta risada irônica – e responde numa voz bem modulada: “contarei”. O público se alvoroça, um burburinho perpassa toda a audiência como vaga lambendo a orla litorânea. Escritor posta-se no proscênio, e, boca pouco afastada do microfone, começa placidamente:


“Esta é uma história, portanto é imperativo que tenha personagens, e essencialmente um protagonista. Pois bem, nosso protagonista é um homem singular: barba e cabelos desgrenhados, face atravessada de sulcos profundos, olhos ardentes, negros. Veste-se como um profeta: a longa túnica azul cobre-lhe o corpo magérrimo e encardido, a pele encobre o estômago acostumado aos continuados jejuns, as feições guardam um ar de perene insânia. E, para completar a figura, um cajado, um enorme cajado pesadíssimo, desproporcional para a figura miúda que o nosso profeta apresenta.

“O povo o observa suspeitoso, olhos apertados e punhos cerrados, intrigados. As pessoas vêem o profeta murmurar palavras estranhas para si mesmo, escrever em longos pergaminhos com penas e tintas infecundas para esse ofício, contemplar horas a fio um único ponto, olhos vidrados e membros hirtos, para depois acordar repentinamente num sobressalto. Escrutam-no à distância: ninguém tem coragem de falar com ele, sua fisionomia estrambótica causa repulsa e temor às crianças, empalidece as mulheres, faz fremir os homens de indignação.

“Num dia de calor desmesurado, o profeta mostrou-se mais inquieto. Marchava de um lado para o outro, sobrecenho tempestuoso, nariz espetando o ar, os olhos incendiados pela vigília. À noite, dirigiu-se para a cidade. Havia festa: louvavam-se aos deuses pastoris pela beleza do crepe sombrio cingido de luzes minúsculas que embelezavam naquela estação o recesso do sol. O profeta olhou aquela festividade esplêndida com mal dissimulado asco. Aos poucos, o barulho foi cessando – o povo tinha percebido a incômoda presença do profeta e olhava-o curioso.

“Que vieste fazer aqui, velho?”, vociferou um homem.

“Venho fazer-vos ver a verdade”, respondeu o profeta. Seus olhos ardiam como carvões que crepitassem, abrasados. Na turba houve um movimento semelhante a um calafrio. Artesãos e escribas tiveram uma tangível sensação de presságio na alma embotada, e diligenciaram calar apressadamente o profeta, que se encarapitara sobre um caixote meio apodrecido e fitava a multidão atônita com seu olhar insano. Mas foi impossível. O profeta prolongou-se por trinta horas consecutivas numa alocução interminável, na qual afirmou que ele, profeta, percebera na clausura da solidão a existência de apenas um deus, que tinha dez braços, oito pernas e uma cabeça enorme, no alto da qual tremulava perpetuamente a flama do entendimento. Os olhos de deus não tinham cor, pois neles residiam a crueza cálida da vida e a frialdade inadmissível da morte. Suas mãos fadavam-se delicadas e hábeis, pois haviam concebido num instante sagrado de inspiração toda a singeleza do mundo. Seu herdeiro, seu dileto herdeiro, fora engendrado na solidão eterna de Sua Divindade, e era singelo e puro, com características humanas e um perpétuo ar de beatitude no semblante indizível. “Ele vive entre nós, fisicamente, e chegará o dia em que ele se revelará com todo o seu séquito feérico e dará gênese a uma felicidade inteiriça, inafiançável mesmo por nossa endurecida iniqüidade, e far-nos-á felizes, agraciando-nos com a honra insigne de fitarmos o semblante de seu criador e gozarmos das venturas por ele concebidas”. O povo não emitiu um som qualquer durante todo o discurso, afogado na loquacidade do profeta e envolto num silêncio de letal fascinação. Permaneceram todos de pé, sem perceber o estrugir dos estômagos surdos aos apelos de sibila e a urina e as fezes que, de tão naturalmente reprimidas, acabavam escapando sem a permissão de seus donos, escorrendo dos pêlos secretos e vindo molhar lentamente a areia desértica da praça. Quando o profeta calou-se, vermelho e exausto, o povo estava ainda petrificado pelo espanto da revelação. Aos poucos emergiu das cavernas das suas mentes um grito unânime de aclamação, um altissonante ronco de mentiras perfumadas que desprezou as irregularidades do relevo, a soberana massa de água salgada que os observava do horizonte, o sibilar secreto das nuvens, o emperro da alma humana e destruiu num dilúvio o tédio que avultava na face pálida do mundo.

A nova fé floresceu na comunidade. A voz dos escribas foi calada pelo alarido da procela, que se aparelhara de forças renovadas, guiada pela mão veemente do profeta. Foram assassinados numa madrugada lôbrega e ensimesmada. O profeta acercou-se de sacerdotes convenientemente instruídos, que mais pareciam sequazes disfarçados, e disciplinou a aldeia na nova crença, fundamentando-a sobre valores refeitos e inflexíveis, cheirando a dissimulado mofo. Como uma mancha insidiosa que penetra no íntimo das coisas e as invade inapelavelmente, a fala do profeta venceu os empecilhos da distância e do tempo, instalou-se na consciência dos viventes da aldeia e das circunvizinhanças num frêmito irresistível. Paulatinamente os países foram caindo sob o domínio de profeta, e ele pôde ver, no seu leito de morte, rodeado por seus discípulos mais fiéis, a derrota dos êmulos e dos opositores que levantaram a voz contra seus postulados.
Profeta morreu tranqüilo, amálgama de peles sobrepostas, mosaico de halos imaginários vislumbrados por todos os apaixonados discípulos. Profeta morreu sorrindo. Ninguém soube, nem mesmo nos séculos que se seguiram, que seu sorriso fora de zombaria, de gaiata e silenciosa esperteza. Profeta morreu desprezando a humanidade, tão banal, tão esperançosa, sempre pronta a acreditar em qualquer mentira descabida arquitetada sobre mistérios utópicos. Profeta foi enterrado – e com ele, nossa história despretensiosa também”.

Alguém tosse na platéia. Homens secam com lenços perfumados o suor visguento da compreensão. As mulheres afundam-se nos casacos pesados, procurando proteger-se da acrimônia intolerável da história. Escritor vagueia os olhar por cada semblante, sorrindo triste. Dispõe-se a devolver o microfone para o presidente quando um homem taciturno, sentado na primeira fila, ruge: “essa não foi uma história despretensiosa”. Escritor fixa o homem por algum tempo, imerso na piedade, e concede: “é verdade, amigo. Infelizmente, é impossível narrar uma história despretensiosa”.

O presidente, também constrangido, considera como azado dar por finda a conferência. O público dissolve-se, em silêncio, pelas galerias.

2 comentários:

Anônimo disse...

é,,, não se narra,,, dos personagens que criam vida própria e objetivam a história. Buff!
Às vezes quero produzir mais códigos e decodificar menos, rs

Abraços e dramatizadas invenções!

Rubens da Cunha disse...

belo retorno
fico feliz

abraços
Rubens