quarta-feira, 23 de julho de 2008

CASE

Entramos num bar pestilento, repleto de mesas de plásticos e homens gargalhando, bêbados. João Henrique mostra certa repugnância, mas faço-lhe notar que um bar ou boteco metido no subúrbio não tem outra serventia senão embriagar na noite os trabalhadores do dia. Ele esboça um meio sorriso, que lhe imobiliza no rosto uma atmosfera de orgulho tão repugnante quanto os bêbados.

Sentamos num canto mais discreto, pedimos uma cerveja e nos deixamos ficar olhando fugazmente os automóveis que rodam na rua asfaltada. João Henrique está absorto. A bebida chega e ele sorve num instante todo o conteúdo do seu copo, silencioso. Foi ele quem me chamou, então vou deixar a ele a iniciativa de começar a conversa, penso.
Esvaziamos a garrafa em silêncio. O dono do bar achega-se cheio de bigodes e toalhas, pergunta se queremos mais cerveja. João Henrique acede com um gesto, os olhos fitos na espuma que escorre vagarosa pelas bordas do copo. Só se resolve a falar quando vê seu copo repleto novamente.

“Valério, você é um grande amigo, sabia?”

“Sabia.”

“Pois eu queria conversar um negócio contigo.”

“Diz.”

“Amanhã eu me caso, como você sabe. E eu queria te pedir uma opinião. Nem é bem uma opinião, que opinião você já emitiu, e muitas. Quando conheceu a minha noiva, me disse que ela parecia ser uma mulher muito boa, submissa, carinhosa, compreensiva. Concordei com tudo naquela ocasião, e ainda agora concordo plenamente. Não nutro qualquer desconfiança quanto ao caráter dela, está me entendendo?”

“Estou”, respondo, levemente interessado naquela lengalenga.

“Pois bem”, ele aperta o copo com tal ímpeto que chego a recear que o vidro se parta entre seus dedos, “amanhã eu me caso.”

João Henrique faz uma pausa, bebe um gole da cerveja, lambe os lábios com lentidão filosófica. Percebo que está um tanto emocionado, conjecturo que o álcool talvez já esteja afrouxando sua estiolada resistência ao sentimento. Tem os olhos brilhantes, tenho a impressão de que estão úmidos. Ele finalmente fala.

“Então, quero te perguntar. Acha que devo me casar?”

Sobressalto-me com a indagação. Olho-o muito tempo, atônito.

“Como?”

Ele baixa a voz, inclina-se até sua cabeça fatigada tocar nas mãos imóveis em cima da mesa. Faz sumir o rosto nos braços sobrepostos.

“Acha que devo me casar?”

Mordo os lábios, olho os bêbados que agora contam piadas. “O japonês foi ao médico, e...” a pergunta me põe numa incômoda obrigação, percebo que o miserável preza demasiado a minha opinião. O que responder-lhe?

“Você já não a ama?”, inquiro.

“Amo, amo apaixonadamente”, responde João Henrique, erguendo o crânio. A iluminação fumacenta do bar desvenda feições transtornadas por um sofrimento indizível. “Ela é minha vida. Quando a olho, mesmo depois destes anos de noivado, sinto a mesma chama, o mesmo calor de quando começamos a namorar. A presença dela me faz bem, muito bem! Não hesitaria em passar a eternidade com ela.”

“Ela tem algum físico? Mau gênio?”

“Não. E a questão não é essa.’

Ele se imobiliza novamente, extremamente infeliz. A cerveja começa a esquentar nos nossos copos. Os bêbados olham-nos disfarçadamente, começam a diminuir a bulha: os embriagados sempre respeitam a dor de outro embriagado. Mas não, João Henrique não está embriagado. Ele agora se levanta e vai espiar o céu, lábios apertados, olhos injetados. Deixo-o refletir à vontade, enquanto vou tecendo conjecturas. Ele volta mais sereno, mas o desespero gira em espiral nos seus olhos, torvelinho de segredos.

“E então?”

“Então quê?

“Devo me casar?

“Olha, João Henrique, essa é uma decisão que só cabe a você. Eu não tenho nada a ver com isso...”

O sofrimento espreme-lhe o rosto, pela primeira vez vejo-o suplicante. Durante meia hora procura me provar, com os argumentos mais arrebatados, como será bom para ele casar-se com a mulher que escolheu para si, como sua felicidade será inafiançável, estupenda, imensa como o horizonte... aos poucos o tom apaixonado vai recrudescendo, e toda sua alma se projeta nas palavras que vai me atirando vertiginosamente, com gestos bruscos e desvairados... observo-o, cauteloso.

“Ora, caro João Henrique, você sabe o que fazer. Está na cara que o que mais desejas na vida é se ligar a essa moça...”

Ele está ofegante, vermelho. Seca com o lenço o suor que lhe poreja a fronte.

“Isso eu sei! O que eu quero é que me você me responda aquilo que eu quero ouvir...’

A surpresa assalta-me os pensamentos com tal furor que entreabro os lábios, perplexo. Fito-o.

“Um momento... essa pergunta que estás me fazendo há meia hora... você a fez a todos os seus amigos, não é?

“É verdade. É sim, Valério.”

“E o que eles responderam?”

“O mesmo que você: que a decisão só cabia a mim.”

“E aposto que toda a sua família também disse isso...”

“Todos. Todos disseram o mesmo.”

A língua umedece-me, preocupadamente, os lábios secos. Finalmente entendo o que João Henrique deseja, olho-o com inexprimível piedade.

“Certo, João Henrique, certo. Não sofra mais. Case. Case, e seja feliz.”

João Henrique soergue a cabeça que se afundara novamente nos braços cabeludos, e olha-me com inequívoca alegria, sorrindo o sorriso mais desgraçadamente feliz que já contemplei. A voz lhe vacila, e ele só consegue emitir uma rouca e enternecida
palavra:

“Obrigado!”

As lágrimas sulcam-lhe o rosto, o rosto recupera paulatinamente a cor ordinária.

“Obrigado!”

A emoção envolve-o compactamente, João Henrique perde a antes sólida compostura humana e transmuta-se numa chorosa massa de carne, que repete um odioso mantra de genuína e desesperada felicidade.

“Obrigado!”

A cena me enfada. Levanto-me e deixo sobre a mesa uma nota amarfanhada. Faço um sinal ao dono do bar, que me compreende.

“Obrigado... obrigado!”

“Não há de quê.”

Retiro-me célere, deixo-o fruindo, esparramado na cadeira, sua sórdida e indesculpável pusilanimidade. Tomo um táxi, e pensativo me recosto no banco. E pensativo me permito observar a noite opaca, de estrelas esmaecidas e semáforos impiedosos.

VANILDO SELHORST DANIELSKI

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