segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Possível impossível

Converso eu com Anônimo, uma prosa filosófica e metafísica que se espicha pelos gritos e risadas do recreio e tritura-se na mastigação opressiva dos que nos rodeiam. Subitamente eu pergunto: Anônimo, quer ouvir uma história?

Depende, Anônimo responde. É um conto, um peça de teatro, qualquer coisa assim?

Estou pensando em escrevê-la sim, mas não decidi ainda, digo.

Conte-a, diz Anônimo.

Começo: toda a história deveria começar com Era uma vez. Essa expressão congela o tempo: era naquele tempo, e em nenhum outro, era naquele tempo e por isso era único, indivisível, indevassável. Portanto começarei com Era uma Vez. Era uma vez Homem-garoto, um adolescente tímido e introspectivo, frio e silencioso. Gostava de dizer reflito e concluo, e tinha espinhas na testa e no queixo, embora poucas. Pois bem. Homem-garoto não tinha namoradas nem amores, embora desejasse intimamente as duas coisas. Almejava tanto que um dia apaixonou-se duplamente. A primeira paixão, a mais forte, tinha por alvo uma mulher morena, de rosto harmonioso e suave, uma inteligência sensível e independente em aparência. Amou-a, mas não confessou o seu sentimento: ela parecia mais velha que ele, dava-lhe conselhos carinhosos, tratava-o apenas polidamente, com certa ternura superior. A segunda paixão surgiu aos poucos: a menina era baixinha, de sardas no rosto, um nariz fino e bonito, um par de olhos de mel, mas Homem-garoto gostava mesmo era de sua boca, uma boca vermelha e polpuda, sempre túmida. Ela escutava-o: ficou sabendo assim de seu niilismo latente, suas dúvidas existenciais pálpitas, seus ideiais literários. Homem-garoto apaixonou-se pelas duas.

Suspendo um momento a história, observo uma formiga carregar um ínfimo pedaço de folha pela calçada de concreto. Anônimo ordena: continue, continue, o que aconteceu?

Olho-o um instante nos olhos - Anônimo tem um ar bovino, de quem se acostumará à canga e irá carregá-la ao pescoço pelo resto da existência - volto a olhar para a formiga: impossibilitado de escolher, incapaz de confessar seu amor dualista, Homem-garoto perdeu-as - a primeira paixão foi sufocada, a segunda paixão afastou-se lentamente, mudou de turno no colégio. Meses depois, como a lembrança fantasma das duas mulheres o atormentasse, Homem-garoto imaginou um velório solitário, encerrou o carinho e o afeto e a saudade em caixões de chumbo, e enterrou as reminiscências em covas rasas. Chegou a recitar a oração dos mortos em latim, uma oração achada por acaso num livro de citações entre traças e um sentimento áspero de abandono.

Calo-me, desviando o olhar para uma nesga de muro mal pintado. Anônimo fixa-me detidamente e indaga: isso é uma história?

Olho para ele, sustento meu olhar de oceano e areia nas suas pupilas bovinas. Há um entendimento acre entre nós dois. Viro as costas lentamente.

Não é uma história, retruco ao ir embora. Foi uma história.

Um comentário:

Anônimo disse...

Cara, to lendo por aqui denovo,,, e sempre páro pra ajoelhar honrarias em sua construção de palavras... "entendimento acre entre nós dois" foi de perder o fôlego,,, buff!
Muito bom ler!

Abraços e salgadas invenções!